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28/11/2003 - 03h33

Bandeirante tinha fama de matador; criminalidade só cresceu no século 20

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MARIO CESAR CARVALHO
da Folha de S.Paulo

Uma imagem em madeira de são Miguel, feita no período das Missões (1682-1706) na cidade de São Gabriel (RS), traduz à perfeição a fama dos paulistas no período colonial: em vez de ter o demônio sob seus pés, como na representação clássica, o arcanjo pisoteia a figura de um bandeirante, o ícone mais persistente do desbravador de São Paulo.

A imagem demoníaca do paulista não era uma exceção no período colonial. O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) relata em "Caminhos e Fronteiras" a fama das gentes de São Paulo pelo país afora. O capitão Juan Francisco Aguirre (1758-1811), comissário enviado pela Espanha para demarcar as fronteiras com Portugal, anotou em seu diário que "o nome de paulista é assombroso para os infiéis, que lhes cobraram um terror pânico" (infiéis, no caso, eram os índios). Rodrigo César de Menezes, governador de São Paulo entre 1721 e 1727, conta que os castelhanos chamavam os paulistas de "feras".

A tentação mais óbvia diante de bestas-feras como os bandeirantes é enxergar no período colonial as raízes da violência atual. Nada mais equivocado, segundo o sociólogo Sérgio Adorno, 51, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A violência era uma espécie de "linguagem corrente" na vida colonial, de acordo com ele, que deixou entre outras heranças o modo com que eram tratados os escravos.

Mas a violência atual tem outras raízes, diz Adorno. Ela decorre da entrada de São Paulo na rota do tráfico internacional de drogas, na disseminação das armas de fogo e no empobrecimento do Estado para oferecer proteção, de acordo com Adorno. São características obviamente inexistentes no período colonial.

O primeiro homicídio

A violência no período colonial tinha a função de legitimar a ocupação portuguesa, na opinião do sociólogo Renato Sérgio de Lima, 33, que coordena a análise de informações na Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Tanto que crimes que apavoram hoje mal eram registrados. O primeiro caso de homicídio documentado na cidade aparece só em 1583, 29 anos depois de a cidade ter sido fundada oficialmente. A vítima era um franciscano espanhol, frei Diogo, assassinado por um soldado raso também espanhol, nas imediações da Luz. O religioso mendicante deu o azar de pedir esmola justamente a um militar coxo e anticlerical. Morreu na ponta de um punhal.

Os problemas recorrentes nessa época eram a inexistência de cadeia na cidade e a necessidade de reconstruir as muralhas que cercavam o triângulo em que estava o Pátio do Colégio, constantemente atacadas pelos índios.

O ataque era uma reação à violência dos portugueses, segundo a historiadora Laima Mesgravis, 69, que foi assistente de Sérgio Buarque de Holanda na USP e também deu aulas na Unesp (Universidade Estadual Paulista). "A maior violência que aparece nos documentos oficiais é contra os índios. E eles reagiam. A resistência indígena foi muito maior do que se imagina", afirma.

Os séculos 17 e 18 tinham uma justiça bastante elástica, segundo Mesgravis. O crime de homicídio, por exemplo, só era punido quando o autor atingia a sétima ou a oitava vítima, afirma a historiadora. "Dependendo do número de mortes, não havia castigo. Matava-se o autor depois que ele tinha cometido sete ou oito homicídios. Não se podia desperdiçar gente naquela época porque havia falta de braços na cidade."

São Paulo era tão reles que funcionava como abrigo de criminosos da Bahia e de Pernambuco. As capitanias eram regidas por leis medievais e vigia o direito de couto --um criminoso de outra capitania tinha o direito de refugiar-se em São Paulo sem ser punido.

Imigração e ciência

O problema começa a ganhar contornos mais contemporâneos com a explosão demográfica que acompanha a chegada dos imigrantes, no final do século 19. A mesma elite que dizia que "a questão social é caso de polícia", na frase de Washington Luiz, presidente entre 1926-1930, tinha a ambição de combater a criminalidade com uma receita científica, segundo o historiador Boris Fausto, 73, autor do clássico "Crime e Cotidiano", sobre a criminalidade em São Paulo entre 1880 e 1924.

"A elite achava que ia embelezar a cidade com a reforma urbana, colocar os pobres nos seus lugares e reduzir a delinquência", exemplifica Fausto. O projeto do Carandiru, nos anos 20, com celas individuais e a recuperação baseada no culto ao trabalho, faziam parte desse ímpeto reformista. As ruínas em que o presídio se transformou no final do século 20 serve como ilustração do fracasso do sonho iluminista da elite local.

Até a metade do século 20, o crime ainda tinha uma aura de redenção e revolta, sintetizada na figura romântica de Gino Meneghetti --o ladrão anarquista, que só tira dos ricos e se torna uma figura mítica nos jornais e nas rádios entre as décadas de 20 e 70.

O culto ao bom bandido seria definitivamente enterrado nos anos 90, quando os homicídios explodem. Em 1990, foram 4.118 assassinatos, contra 1.470 dez anos antes, um salto de 180%.

A polícia costuma atribuir o aumento ao tráfico de drogas, mas há pesquisadores que vêem essa hipótese com ressalvas. "A violência é muito mais antiga do que a questão da droga. A droga é a principal potencializadora, mas não é a causa. A violência explode quando aparece a arma", diz o sociólogo Renato Sérgio de Lima.

A arma, segundo ele, muda a escala --o que era resolvido com briga, agora o é com um tiro. O inchaço populacional, a quebra dos laços comunitários e a falência gerencial da cidade tornaram ainda mais explosivos os confrontos.

Sérgio Adorno prefere colocar a cidade dentro de um cenário internacional. O aumento da violência é um fenômeno que começou nos EUA nos anos 50 e foi se espalhando pela Europa nas décadas seguintes.

Não por acaso, foi durante esse período que ocorreu uma das maiores migrações da história (do campo para a cidade), surgiu uma nova maneira de vida --baseada no consumo acelerado-- e mudou a forma de gerir as cidades. "Mudou a ordem e a lei", sintetiza Adorno. O ingresso do país na rota internacional do tráfico de drogas, há 30 anos, fez disparar os homicídios, segundo ele.

Enquanto o crime se reformava, a Justiça e a polícia mantinham o mesmo modelo de 40 anos atrás. Pior: a polícia não se livrara do viés autoritário que adquirira no regime militar. Aumentar a punição com instituições como essas é ineficaz, segundo Adorno. "Seria como tratar câncer com Melhoral, sem depreciar o Melhoral."
 

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