Pelas ruas Depois de ter conhecido aquele pessoal que vivia nas ruas, eu pensava: “se eles conseguem, eu também vou conseguir”. Desde aquela tarde, quando voltei de Rio Claro, infelizmente eu tinha aprendido que, daquele dia em diante, não precisaria mais nem de uma casa, nem de um teto para viver. Esse precedente me levou mais fundo no poço. Poço não, porque nele tem água limpa. Mais fundo na fossa, que era o que tinha se tornado a minha vida. A decisão de ficar pelas ruas não foi, na realidade, uma decisão: quando dei por mim eu já estava “pelas ruas”. Até então, de uma forma ou de outra, ainda arrumava um teto para ficar. Mas de repente aquela coisa de não ter mais que ser assim foi a melhor sensação que eu tive no momento. Conforme o tempo passava, eu ia aprendendo uma nova forma de sobrevivência. O principal era matar o tempo, já que eu não tinha nada para fazer com ele. Durante o dia, dava para andar bastante, sentar nas praças, rever lugares onde vivi ou sentar num bar fuleiro e ficar horas tomando minhas pingas com o dinheiro que pedia nas ruas. Assim que conseguia 50 centavos, já tomava uma pinga para dar ânimo. Aquela que tirava qualquer pontinha de bom senso restante. Depois de conseguir mais algum dinheiro, tomava uma cerveja que, às vezes, demorava horas para acabar. Mas isso também me provocava fome — e ficar nos bares sentindo aquele cheirinho de 295 bell.pmd 295 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES comida e não ter dinheiro para comer nada me fazia voltar para as ruas para pedir. Só que ali, longe do aroma das panelas, quando eu conseguia qualquer moedinha, já entrava novamente em algum bar bem encardido como eu para beber mais uma pinga. Com a energia que essas cachaças me davam, eu atravessava São Paulo andando. Quando anoitecia, a barra ia pesando. Apesar de todos os lugares perigosos pelos quais já tinha passado e de estar, na maioria do tempo, alcoolizada e bem cansada pelas caminhadas, eu sentia medo. A noite parecia infindável e assustadora para quem não tem um lugar para chegar e nem onde dormir. Quando era dia, eu queria que anoitecesse para poder encostar o meu corpo exausto em algum lugar e dormir. E assim não pensar em mais nada. Mas quando a noite chegava, tudo o que eu queria era que amanhecesse para eu poder recomeçar a caminhada, justamente por não ter onde ficar. Muitas vezes fui à Barra Funda, como se estivesse à procura de alguma coisa do meu passado. Dos casarões, apenas um, o da dona Mirtes, no qual eu havia morado, continuava em pé. Ficava ali, olhando, olhando, como se esperando que de repente o tempo voltasse e eu reencontrasse aquelas pessoas que fizeram parte do meu passado. Num desses dias que fui lá, cismei que iria encontrar minha madrinha Yolanda – e assim fui batendo de porta em porta, perguntando por ela e pelo restante da família. Não sei o que eu esperava que acontecesse se a encontrasse, mas com isso gastei um bom tempo do dia e isso em si já valia. Também ia muito à Praça Olavo Bilac, de onde dava para ver o prédio em que morei na infância. Eu não tinha nada o que fazer, com quem falar. Ali ninguém me conhecia. Na Barra Funda eu passava pelos casarões, mas ali, com uma praça próxima ao prédio, eu sentava e ficava horas só pensando. Muitas vezes me lembrei daquele outro homem que era nosso vizinho e minha mãe tinha escolhido para ser o alvo das suas alucinações. Mesmo eu sabendo que não era real, um dia vi um homem parecido com ele — na época em que parava na casa da Denise — e fiquei gelada, assustada. Como se tudo aquilo do 296 bell.pmd 296 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas meu passado fosse real. Quase saí correndo, fugindo dele. Mas a única coisa real naquilo eram os gritos de minha mãe na janela pedindo socorro e o final da noite nos bancos da terceira delegacia. Ficar olhando aquela região também me lembrava o pai da Simone. Seu Otto era dono de uma loja de peças — acho que para a indústria ou caminhões, não me lembro direito — que ficava ali bem perto, na Rua Pirineus. E aí minha mente me levava para outro lugar da minha vida, na época em que, trabalhando com a Simone, eu vinha à loja com freqüência resolver alguma coisa com ele. E assim meus pensamentos me levavam de lá para cá. Eu ia a algum bar, bebia qualquer coisa e, de repente, já estava anoitecendo. Era hora de ir para o meu local de dormir, lá nas árvores em frente ao Instituto da Criança do Hospital das Clínicas. Como tinha muita vontade de usar cocaína, escolhia as pessoas nas ruas para ver se o que conseguia dava para ir direto comprar um papel, que custava 10 reais. Mas durante todo o tempo em que vivi essa vida, foram raras as vezes em que ganhei algum valor assim. E eu, com os trocados que ganhava, não conseguia juntar, pois logo que tinha algum dinheiro corria para o bar mais próximo para beber até não ter mais condições de pensar. Enquanto eu tivesse alguma consciência, doía demais. Muitas vezes, um rádio ligado num bar, uma canção conhecida me levava para lugares da minha lembrança que me faziam ficar mais triste ainda. Não conseguia ficar consciente, não agüentava as lembranças. Onde estava a minha mãe? Onde estava a nossa casa? Onde estava o meu trabalho? Onde estava a minha vida? Depois chegou um ponto em que não queria mais ficar bebendo e esperando o tempo passar. Estava vivendo com a roupa do corpo, já bem encardida, e quando entrava nos bares e pedia uma pinga, era beber e sair andando. Os homens que me atendiam o faziam com muita má vontade — e eu já não tinha também a menor vontade de conversar. Conforme o efeito do álcool ia passando, eu começava a sentir fome e muito cansaço. Tudo o que queria nessas horas era ter um 297 bell.pmd 297 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES lugar para chegar. A maior dor era querer voltar para casa e não ter para onde ir, e aí eu recomeçava a pedir dinheiro nas ruas. Muitas vezes eu estava pensando realmente em comer alguma coisa e falava isso para as pessoas. No entanto, ao primeiro dinheiro conseguido, novamente entrava num bar e recomeçava a beber. Em diversas oportunidades, nos meus dias de porre, terminava chorando muito. Queria dar um fim na minha vida, mas não tinha coragem. Eu andava tendo muitos apagamentos por causa do ao álcool. Todos os alcoólatras têm isso. Quando dava por mim, estava num lugar em que não fazia a menor idéia de como tinha chegado lá. E em locais completamente desconhecidos. Certa vez, quando dei por mim, estava num trem sem a menor idéia de para onde ele me levava, de o que tinha me feito entrar nele, de como eu tinha pagado a passagem e de qual estação eu tinha feito isso. Enfim, um branco total. Pensando em procurar novamente ajuda médica, fui parar no Hospital das Clínicas. Quando cheguei, mais uma vez, por estar bêbada, ninguém me atendeu. Saí de lá e fui me sentar no local onde eu tinha conhecido aquele pessoal das ruas. Nesse dia, não tinha ninguém. Eu estava exausta, deitei como da primeira vez e acabei dormindo. Quando acordei, já era noite. Não sabia que horas eram, nem o que fazer ou para onde ir. Minha boca estava amarga e seca, precisava beber alguma coisa. Seria muito bom se conseguisse comer algo também. Só que para fazer tudo isso precisava de dinheiro. Mais uma vez fui parando as pessoas na rua. Eu não tinha uma fala específica, nada ensaiado, o que vinha à cabeça na hora eu falava. Na maioria das vezes, não precisei mentir, pois a minha situação era grave e verdadeira. Nessa rua do Hospital das Clínicas, caminhando em direção à Rua Teodoro Sampaio, há uma lanchonete que fica aberta 24 horas, mas não vende bebidas alcoólicas. Fui até lá porque estava com fome e com vontade de ir ao banheiro. No caminho, consegui um dinheiro que dava para eu comer alguma coisa, mas depois de ter ido ao banheiro tudo o que queria era sair do ar. Não agüentava ficar sóbria 298 bell.pmd 298 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas (essa palavra não é bem a que eu quero usar. Sobriedade é uma coisa muito boa e difícil de se conseguir. Quando estava com a consciência não alterada por alguma droga, não agüentava ver em que eu tinha transformado a minha vida). Ao sair do banheiro, em vez de comer alguma coisa como tinha pensado, fui andando no sentido contrário, em direção à Avenida Rebouças. De repente, vi no meu caminho uma barraquinha que vendia exclusivamente bebidas alcoólicas. Como eu não tinha visto? Isso não importava. Fui chegando, pedindo um conhaque logo de cara. Sem ter o que fazer, fiquei ali na barraquinha conversando. Depois de um certo tempo, já com o meu teor alcoólico alto, resolvi ir embora. O homem não estava mais a fim de conversar. Saí dali sem saber para onde ir. Para a rodoviária, onde dava para ficar dormindo sentada, tinha que tomar o metrô, que àquela hora estava parado. Lembrei-me então de um prédio ali junto ao Hospital das Clínicas, um centro de convenções. Ao lado da bonita porta de vidro tinha umas cadeiras até parecidas com as da rodoviária. Como elas não tinham braços, deu até para deitar. Eu não carregava nenhuma sacola. O meu passado já era muito pesado para carregar. Andava com a roupa do corpo, então não tinha nada para pôr embaixo da cabeça como travesseiro. Fazia isso com as mãos e, até hoje, mantenho esse hábito. Depois de eu ter dormido algum tempo, veio um segurança e me pediu para sair. Não existe nada pior que acordar um bêbado antes do porre ter passado. A impressão que eu tinha era que estava mais bêbada ainda. Saí andando em direção à Rua Teodoro Sampaio. Quase na esquina, vi um lugar que achei perfeito para ficar. Já tinha visto umas pessoas ali, mas agora estava vazio. Era no meio de umas árvores, defronte ao Instituto da Criança. Não poderia ser melhor. Ali tem movimento a noite toda, é um pronto-socorro infantil, e tem seguranças na porta, ou seja, nada aconteceria de ruim comigo. Como se o que estava acontecendo não fosse ruim o suficiente. Precisava de um papelão. Mas onde iria arrumar um papelão àquela hora? Então resolvi dormir ali mesmo, do lado de fora da terra, em 299 bell.pmd 299 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES umas pedras que rodeavam o jardim. A partir desse dia, e durante todo o tempo em que estive pelas ruas, esse local foi onde eu permaneci por mais tempo. Quando as minhas caminhadas me levavam para longe, eu tentava dormir onde estava, mas nunca deu certo. Uma vez, inclusive, havia um monte de moradores de rua dormindo num posto de gasolina próximo ao Viaduto Pedroso e eu fui chegando. Na mesma hora, uma mulher muito invocada me mandou sair de lá e eu não esperei nem para saber o porquê. Saí andando rapidinho. Ali não era o meu território, o meu pedaço era lá nas Clínicas e pronto. Numa das noites que passei lá, encontrei aquele pessoal da primeira vez. Ficamos bebendo e conversando um tempão, mas eu não gostava de andar em turma e muito menos de ter alguma obrigação, como na hora que eles iam para algum lado ter que ir junto. Eu tinha achado um espaço e era por ali que queria ficar. Numa tarde, quando estava muito louca, chamei o Mineiro e pedi para ele ir comigo até o Instituto de Psiquiatria. A minha idéia era falar com a Dra. Andréa Souto. Eu precisava de ajuda, sabia dis- so, mas o que consegui fazer foi uma bela encrenca andando bêbada pelo hospital. Quando a encontrei, ela estava no caixa eletrônico. Lembro-me até hoje da cara de espanto dela. E eu ali, dizendo que estava daquele jeito porque ela não queria me atender. A Dra. Andréa é decidida, tem uma personalidade forte. Por isso, nem se abalou com o que eu estava dizendo. A única coisa que falou foi que, naquele estado, não perderia o tempo dela para ouvir absolutamente nada. E saiu andando. Nesse dia, saí do hospital e resolvi fazer greve de fome. De bebida é claro que não. Os dias foram passando e eu por ali, das minhas árvores para o lugar do pessoal lá na frente. Numa noite, aprendi mais uma forma de sobrevivência nas ruas. Estava ameaçando chover, então me ensinaram a dormir em cima de uns caixotes (para a água escorrer por debaixo das minhas costas sem me molhar) e coberta por um plástico, normalmente aquele preto de lixo. Como era minha primeira chuva, o pessoal até dividiu comigo os plásticos e caixotes. 300 bell.pmd 300 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Durante meu período de greve de fome, apareceu uma Kombi, aquelas com pessoas que fazem um trabalho com moradores de rua levando comida, refresco de maracujá e uma palavra amiga. Eu, naquela noite, aceitei o refresco. Depois que foram embora, quando fui me levantar, tive a maior tontura da minha vida. O detalhe é que não passava. Não conseguia andar, tudo rodava acelerado e nesse momento pedi para o Baiano (tinha Mineiro, Baiano, Cearense e quase todos eram chamados pelo nome do Estado em que tinham nascido) me levar até o pronto-socorro das Clínicas, um pouco mais adiante. Precisei me firmar nele para andar. O Baiano ficou muito assustado e com medo que sobrasse para ele alguma encrenca. Me deixou na porta e saiu andando. Era horrível essa tontura. Pelo barulho real que estava fazendo, fui atendida logo. O que eu tinha era uma fraqueza enorme. Depois de ser medicada com soro — mais alguma coisa que o coloriu, que eu fiquei sem saber o que era — fui encaminhada para o gastro de plantão. Conheci um médico atencioso e solidário. Conversamos bastante. O que eu tinha, apesar da vida que levava, era apenas uma pequena gastrite. Quando fui embora, o médico me deu o telefone até da sua residência. Mas na realidade eu não queria ajuda, eu queria morrer. Chegou um ponto na minha vida em que não queria pedir mais nada para ninguém. Não suportava mais nada, não queria mais nada, tinha perdido a guerra, não tinha mais nenhuma batalha para lutar, não tinha forças para mais nada e fui me largando mais ainda. O local onde eu dormia foi reformado para virar estacionamento subterrâneo. Mas as minhas árvores continuam lá. E sempre que as vejo não consigo deixar de pensar no milagre que eu me tornei. . 301 bell.pmd 301 8/2/2006, 08:26 Uma família amada Não me sinto à vontade escrevendo apenas a respeito do meu relacionamento com o Sacha, tampouco quero escrever contando as inúmeras insanidades que pratiquei quando estive por duas vezes hospedada na casa dele. Quero falar de quanto a família Band é importante para mim e quanto eu os amo. Não convivi com o Sr. Silvio Band, apenas o vi algumas vezes e o nosso contato foi restrito aos cumprimentos formais da boa educação. No entanto sei, de muito ouvir falar, que ele é um homem muito inteligente e charmoso. Ouço falar dele desde os anos 80, quando a Meire Naumovs, minha amiga, era sua secretária. Isso foi antes mesmo de conhecer Sacha, Nica, sua mãe, e sua irmã, Elisa, com o namorado Cassio. Gente muito boa. E “gente boa”, como diz o Sacha, são todas as pessoas que freqüentam a casa deles, como Rick e Toninho. A casa do Sacha, como diz a Nica, é um circo. E, acrescento: cheio de vida e de amor. Nica é uma mulher excepcional. Nunca, desde que a conheci, em 1997, nunca mesmo a vi mal humorada ou dizendo não a alguém. Sempre dá um jeito, puxa daqui, estica dali. E o bolero “Feitio de Oração”, como ela fala, dá certo. Por conta dessa mulher ética, generosa e amiga, que imprime e estende a sua conduta aos filhos, conviver com eles é um privilégio. O Sacha não pode ser mais carinhoso comigo. Se algum dia ainda vier a produzir qualquer evento, quero tê-lo como meu braço direi 302 bell.pmd 302 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas to, em razão de sua competência e vontade de sempre aprender mais. Ele terá um crachá especial bem grande no peito, “Produtor”, com entrada liberada para todos os locais. Minha história com o Sacha é muito interessante. Quando eu trabalhava com a Simone, numa noite fomos assistir a um show do Milton Nascimento — isso foi no início dos anos 80. Ao final do espetáculo, Sacha aguardava a liberação da entrada, junto com a mãe, no camarim de Milton. Só que aquela aglomeração na porta estava impedindo sua passagem. Sendo o Sacha portador de deficiência física, com suas muletas, a coisa estava mais complicada. Simone, vendo aquele garoto que tinha vibrado com o show e queria falar com o Milton, não teve dúvida: com seu já conhecido jeito decidido, pegou o garoto no colo e o levou para o camarim. Essa história é demais! Até hoje o Sacha vibra com ela e eu também. Ela serviu para nos aproximar ainda mais. Nossos caminhos se cruzaram de várias formas: por meio da música, da casa da Meire, onde eu ouvia falar deles, e, finalmente, da minha recuperação. Como diria o Cazuza: “Nossos caminhos foram traçados na maternidade”. Quando os conheci, Elisa morava em Campinas e estudava Artes Cênicas. Sacha estava terminando o segundo grau. Nica me recebeu de braços abertos e carinhosamente. Eu estava saindo de uma internação, com dificuldades de moradia, e ela, generosamente, me recebeu. Na casa do Sacha eu tinha tudo: carinho, respeito e conforto emocional. Mas nada surtia efeito para mim. Eu olhava para Sacha e via todo seu esforço para ter uma vida produtiva, digna, enquanto eu... A principal coisa que ocupava os meus pensamentos era como dar um jeito de usar alguma droga. Aquela era a segunda oportunidade que eles me davam. Eu já tinha ficado hospedada lá por alguns dias no ano anterior. Nessa segunda vez, eu tinha uma oportunidade real de trabalho com eles. Sacha abriria uma empresa de produções artísticas e eu teria, para recomeçar a vida, a possibilidade de realizar um show beneficente para a Fundação Selma. Sabia, como sei, que se me empe 303 bell.pmd 303 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES nhasse, trabalhasse direito, daria para formar um pool de patrocinadores para a realização de um grande show, como tantos que já havia feito. Tendo à frente do projeto a Fundação Selma — uma entidade séria e de credibilidade comprovada —, o evento seria um sucesso. Mas o que fiz não poderia ser pior. Criei a idéia, empolguei a todos. Mas, com o uso de cocaína já instaurado novamente, numa certa manhã fui embora sem dar a menor satisfação. Deixei Sacha numa posição delicada perante a Fundação. Naquele dia, nada de excepcional tinha acontecido, mas eu não agüentava a obsessão e a compulsão para usar drogas. Muito menos conseguia olhar para eles, de tanta vergonha que sentia. Ninguém me cobrava nada, mas a minha consciência, sim. A culpa me corroía. Todos os dias eu jurava a mim mesma que trabalharia com afinco, mas não conseguia, estava profundamente doente. Precisava, sim, de uma internação. Aproveitei uma hora em que o Sacha não estava em casa e saí de fininho para a Nica não perceber. Quando saí do elevador, já no corredor que dava para a porta da rua, ouvi a voz de Sacha: — Bebel, onde você vai? Minha resposta foi a mesma que dei a muitas pessoas quando sumi: — Vou até ali e já volto. O que aconteceu depois disso é que voltei para as ruas, fiquei dormindo na frente do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, pedindo dinheiro na rua e bebendo pinga. Dessa vez, completamente só. Eu não queria falar com ninguém. Pensava no Sacha e queria morrer. Pensava no show e me dava mais raiva ainda, porque eu sabia que era viável, mas tinha deixado tudo para trás do jeito mais inconseqüente possível. Dias depois pedi ajuda à psicóloga Márcia Moraes, do Recanto. Ela conseguiu uma vaga para mim numa comunidade séria de recuperação, que tinha entre seus responsáveis o Sr. Timóteo — mas a internação seria para 9 de janeiro e ainda não tinha passado nem o Natal. Perguntei a ela: 304 bell.pmd 304 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas — Mas o que eu faço? Como vou viver até lá? Onde vou ficar? E Márcia, de modo profissional, me respondeu: — Do mesmo jeito que você vem vivendo. Fiquei no Sacha em novembro e durante parte de dezembro de 1997. Depois, na segunda oportunidade, fiquei lá de meados de março à semana seguinte ao Dia das Mães, que foi no segundo domingo de maio de 1998. Da segunda vez que fui embora, eu me arrebentei na rua, me machuquei de maneira quase irreversível, tamanha era a minha culpa. Anos depois, no segundo semestre de 2002, quando já estava com mais de dois anos de total abstinência de álcool e drogas, eu estava no metrô, indo para casa depois de um encontro de recuperação, e ouvi uma voz muito conhecida. Era o Sacha. Olhei para ver de onde vinha a voz e vi o fisioterapeuta do Sacha, que eu conhecia de encontrá-lo na casa deles. A seu lado, de costas para mim, estava o Sacha. Na hora, tive duas reações. Uma era a vontade de falar com ele. A segunda era não ir até ele pelo medo da rejeição. Mas prevaleceu a primeira. Levantei e dei a volta na cadeira, ficando de frente para ele. O que eu vi e ouvi foi um sorriso largo e uma voz carinhosa: “Bebel!”. Ficamos muito emocionados e eu pude mais uma vez sentir o quanto essa família é maravilhosa. Eu já estava perdoada. Desci com ele na estação Marechal Deodoro e ficamos ali conversando. Sacha agora tinha sua cadeira motorizada e andava de lá pra cá sozinho. Fiquei muito feliz por ele, pela abrangência maior da sua independência. Conversando, fomos em direção à casa dele. Gente, eu quase morri de susto. Ele mora na Praça Buenos Aires, são vários quarteirões de uma subida às vezes bem íngreme – e ele ia numa velocidade que eu, correndo assustada, tentava acompanhar. Quando chegamos perto de sua casa, ele me convidou para ir até lá, mas, para mim, ainda não dava. Tinha sido um grande impacto tê-lo encontrado e fiquei com medo da reação de Nica e Elisa, que tinha voltado para casa depois de terminada a faculdade. Também tinha o meu horário, pois hoje eu tenho responsabilidade comigo e com os que me cercam. 305 bell.pmd 305 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Quando, um dia, eu mudar de endereço, com certeza um dos itens que a nova casa vai precisar ter é a proximidade com alguma estação de metrô, para favorecer o Sacha. Darei a ele uma cópia da chave de casa para que tenha livre acesso, como um dia eu tive à casa dele, o que agora me foi restaurado. 306 bell.pmd 306 8/2/2006, 08:26 Olhar de frente Enquanto estive na casa de Sacha, todas as vezes em que insistiu para eu ir a algum show com ele eu recusei. Tinha medo de tudo e de todos, mas um show em especial achei que dava para ir. Tinha muita vergonha da minha aparência atual, quase não tinha roupa, apenas uma calça preta e outra bege, uma camisa branca que a Nica me deu e algumas camisetas. Mas, para esse show, eu não vi impedimento por várias razões. Em primeiro lugar, pelo artista. Era uma apresentação do Gilberto Gil e a lembrança que eu tinha dele era de uma pessoa extremamente generosa. Sua esposa, Flora, que cuida dos interesses profissionais dele, também me conhecia bastante e isso facilitava para mim. Por último, o local: o show era para a inauguração do SESC Vila Mariana, um ambiente despojado. Então daria muito bem para ir com a calça preta e a camisa branca. Além disso, Sacha tinha entrada livre no camarim de Gil pelo relacionamento de amizade dos dois havia muitos anos. E assim fomos ao show. Quando chegamos, antes mesmo de o show começar, Sacha foi ao camarim de Gil e estava ansioso e empolgado para proporcionar o meu reaparecimento no meio artístico. Assim que Gil me viu, olhou mais atentamente, como buscando na memória quem eu era. Em seguida, já sabendo, nos cumprimentamos alegremente. Logo a Flora apareceu e ela foi extremamente simpática e calorosa comigo. Na 307 bell.pmd 307 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES mesma hora, disse para o Sacha ficar conversando com Gil e me levou ao camarim para conversarmos. Contei bastante coisa do que havia acontecido na minha vida. Quando o show começou, continuamos ali conversando. Foi então que, num determinado momento, dada a reciprocidade do encontro, utilizei-a já com pensamentos de usar cocaína. Era como se eu saísse de cena e a drogada irresponsável, desonesta, mentirosa, assumisse o meu lugar. Sabendo da generosidade de Gil e Flora, perguntei a ela se eles não poderiam me ajudar financeiramente. Não seria muito para eles, mas para mim daria até para morrer de overdose. Usando como desculpa o tratamento dos dentes, já que a Nica tinha me levado a um dentista amigo para fazer as emergências, principalmente o dente da frente que eu tinha quebrado, pedi, com requinte de detalhe: R$ 1.050. Os R$ 50, na minha cabeça, eram a dose de manipulação que eu usava para tornar o valor mais real do que uma soma redonda, que poderia dar na vista. Veja a barbaridade da minha mente. Ali, no camarim, Flora falando e eu já bolando o meu plano. Depois de dizer que arrumaria o dinheiro e daria os números de seus telefones – residência, escritório, celular –, ela pediu que eu entrasse em contato com uma funcionária da produtora que já me apresentou ali mesmo e explicou o assunto. Por fim, Flora me disse uma frase: — Bell, eu gosto de ajudar as pessoas e emprestar dinheiro, mas eu adoro receber. No dia seguinte, liguei para o Rio e passei os dados da conta da Nica. Fiquei aguardando o depósito. Passaram alguns dias e nada. Acho até que Flora tinha desistido, mas eu insisti tanto que, por fim, o dinheiro foi depositado. Deixei uma parte na conta da Nica para cobrir os cheques do dentista e o acerto que tinha feito com ela de que pagaria aluguel para dar uma força, mas não fiz nada disso. Fui embora para a rua e nunca mais falei com Flora. Um dia, já em recuperação, trabalhando com o Gustavo, tentando lançar a banda pop “Primos Dela” e acreditando mesmo no traba 308 bell.pmd 308 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas lho, pensando em não querer ter nenhuma surpresa desagradável ao encontrar Flora por acaso, tomei a iniciativa de ligar para ela. Seus telefones tinham mudado. Então, nessa busca, por acaso consegui o telefone da Tia Léa, que durante muito tempo foi responsável pelas finanças de Gal, de Caetano, de Maria Bethânia e, acredito, de Gil também. Mesmo que não tivesse sido, era o melhor canal de reaproximação com a Flora. Contei à Tia Léa a verdade em detalhes, como contei agora neste livro. Ela me deu o telefone da residência deles e me incentivou a conversar com Flora. Liguei na mesma hora. Infelizmente, eles estavam viajando. Pouco tempo depois, desisti de trabalhar com a banda. Por não ter o dinheiro para pagar minha dívida com a Flora, desisti de ligar para ela depois daquela tentativa. Para explicar a situação para Flora, sou sincera: o medo voltou. Agora, como estou escrevendo a história da minha vida, essa história não poderia faltar. Aprendi no Recanto que reparação financeira se faz pagando a dívida. Continuo sem o dinheiro para quitá-la, mas hoje não me escondo mais de ninguém que, por acaso, eu possa encontrar. Olho de frente e arco com as minhas responsabilidades. Sei que devo muito, mas sei também que vai dar para fazer um planejamento e pagar todos os meus credores. A minha recuperação, mais o livro, vão me proporcionar essa possibilidade. Na realidade, já estão proporcionando. 309 bell.pmd 309 8/2/2006, 08:26 Carta de Flora Gil para Bell, publicada na revista TripTripTripTripTrip: alegria em saber que a vida de Bell está mudando Reprodução da revista Trip bell.pmd 310 8/2/2006, 08:26 A tiazinha muito louca da Biquinha Estava em São Paulo e sem moradia. Fazia alguns dias que tinha saído da casa do Sacha para “ir até ali”. Sabia que não voltaria, como não voltei. Mas, também, ficar pelas bocas de drogas sem dinheiro não dava. Minha situação naquele momento era péssima: apenas com a roupa do corpo, sem uma bolsa, sem um documento sequer. O meu grau de comprometimento com o álcool e as drogas estava completamente fora de controle e isso estava assustando as pessoas. Ninguém queria saber de complicações, principalmente as que vinham do uso de drogas, como uma overdose, uma parada cardíaca, enfim, nada que envolvesse hospitais ou a polícia. Além do mais, eu não tinha dinheiro. Estava cansada de beber, que era uma forma barata e fácil de enlouquecer. Uma pinga eu comprava com 50 centavos, que eu pedia nas ruas. Na real, o que eu queria era usar cocaína, estava fissurada, não adiantava ficar bebendo. Eu precisava de cocaína, todo o meu corpo se ressentia pela falta dela, mas não tinha mais onde conseguir dinheiro, tinha esgotado todas as pessoas do meu relacionamento. Depois desses dias na rua, a minha aparência estava horrível, toda suja, sem tomar banho, com a roupa do corpo por vários dias. Da casa da Marina eu também tinha saído com um “vou até ali” e isso tinha sido meses atrás. Fazia quase um ano que ela não tinha notícias minhas, mas era para lá que eu acabava voltando. 311 bell.pmd 311 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Como sempre acontecia, eu não sabia como tinha chegado lá. Quando acordei, estava no sofá da casa da Marina e ela com aquela cara fechada. Eu não sabia nada, nem quanto tempo fazia que eu estava lá nem como consegui sair da Bela Vista. A última memória que eu tinha era do Paulinho, um cara metido à besta, tentando me violentar nas paredes da igreja Nossa Senhora Achiropita. Como ele não conseguiu (porque, apesar de ser madrugada, estava passando gente), pegou o suéter que eu havia ganho do Sacha e jogou longe, num local que só ele alcançaria, para poder vir buscar depois. Essas pessoas que vinham pela rua certamente foram enviadas por Deus. Minha mãe freqüentou aquela igreja e devem ter sido os joelhos calejados dela, de tanto rogar por mim, que me ajudaram mais uma vez a sair de uma enrascada, que me livraram de um grande perigo. Nessa noite, Marina tinha um casamento para ir, do qual ela era a madrinha do noivo, um rapaz líder de um grupo de pagode com quem ela estava trabalhando. Quando ela ia sair, olhou bem séria para mim e me disse que, se eu chegasse perto de qualquer droga, tomasse um gole que fosse de qualquer coisa, eu poderia ir embora na mesma hora, que não esperasse nem ela voltar. Na realidade, o sufoco que eu tinha passado na Bela Vista com aquele rapaz forte, um jogador de capoeira, de quem somente por um milagre fui salva (pois eu não teria forças para me desvencilhar dele), me assustou bastante. Resolvi parar de beber e me drogar. E, finalmente, entrar em recuperação. Procurando ajuda médica especializada, vim saber que ali, perto do apartamento da Marina, tinha um grupo de recuperação. No posto de saúde mais próximo também havia um programa liderado por um médico, mais psicólogos, assistente social e conselheiros. Chamava-se Prodec, um programa para dependência química, exatamente o que eu precisava naquele momento. Quando, dois dias antes, cheguei à casa da Marina, eu não tinha nada nas mãos ou nos bolsos, nem um documento sequer. Luzia, a filha da Marina, me arrumou uma calça e uma blusa para eu vestir. 312 bell.pmd 312 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Já na primeira reunião de recuperação as pessoas se solidarizaram. Um senhor, que tinha ficado viúvo fazia pouco mais de um mês, arrumou várias roupas de sua esposa, além de uma rica cesta de mantimentos. Não poderia nem dizer que era uma cesta básica, pois era muito mais que isso. Um outro senhor, que trabalhava numa instituição de solidariedade, alguma coisa ligada aos Freis Vicentinos, me deu mais alimentos. Também recebi algum dinheiro. Com a Marina (por mais absurdo que isso possa parecer) ficou acertado que eu moraria lá, mas pagaria R$ 220. Isso era mais ou menos o preço de um quarto na região, mas lá eu não ficaria só. Colocar dinheiro na conversa era uma forma de garantir que me aceitassem e gostassem de mim — o meu velho mecanismo de baixa auto-estima e um orgulho enorme que não me permitiam ficar por baixo. Para quem tinha chegado dois dias antes completamente drogada, a ponto de quase não se lembrar de nada, uma pessoa que estava morando na rua, de repente ter um lar novamente e entrar em tratamento num programa hospitalar para dependência química era mais que um milagre. Nem em Santos, uma cidade bem maior do que São Vicente, havia um tratamento como esse. Mas como uma pessoa que não trabalhava e não tinha nenhuma pensão poderia se responsabilizar por um pagamento de moradia de R$ 220 por mês? Por mais que eu não usasse drogas, o meu comportamento continuava insano. No primeiro mês, um senhor do meu grupo de recuperação me ajudou. No outro, o Dr. Estevão, produtor de shows do Recife e meu grande amigo, foi quem enviou o dinheiro direto para uma conta da Marina, no Banco do Brasil, onde ela recebia a pensão referente à morte da mãe dela. No terceiro mês, outro companheiro me ajudou. E assim foi com as cestas de alimentos, com as feiras que eu fazia de vez em quando com o dinheiro que esses mesmos amigos faziam questão de me dar. Dez reais aqui, cinco acolá e fui vivendo e conseguindo me manter em total abstinência de álcool e drogas. 313 bell.pmd 313 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES As brigas às vezes aconteciam, como em qualquer casa. E por eu não estar bebendo ou me drogando, dava para não agir com raiva nem tomar uma decisão precipitada. Num dos programas de recuperação que eu freqüentava, porém, sinalizaram que o meu comportamento continuava doente. Eu só não usava drogas, mas, no restante, não estava bem. Eu não bebia nem me drogava desde que tinha chegado a São Vicente, no dia 28 de maio, e ia a reuniões de recuperação com freqüência, então estava ficando difícil levar a vida. Não trabalhar, ficar vivendo nesse sufoco de todo mês arrumar dinheiro, tentar fazer alguma coisa no meio artístico e não conseguir... Tudo isso foi me estressando até que, numa tarde, durante uma das discussões na casa da Marina, não tive dúvida: mesmo sem beber, peguei minhas coisas e fui embora. Estava novamente na rua, só que agora não estava louca e nem queria ficar — e isso teve um peso totalmente diferente na minha vida. Dia 28 de maio tinha sido o último dia em que eu tinha usado drogas. Fazia exatos cinco meses. Era o maior período de abstinência desde que eu tinha começado a usar cocaína, quase vinte anos antes. E eu não queria voltar para aquele sofrimento. Saindo de lá, fui direto para o grupo de recuperação. Encontrei um amigo com quem pude dividir minha dor, meu desespero, e pude também ouvir dele que era para ter fé, que existia um Deus amoroso e cuidadoso e que ele me ajudaria. Foi exatamente isso que aconteceu. Após o encontro de recuperação, um dos meus novos amigos me disse que morava numa pensão ali perto e que tinha alguns quartos para alugar. Fiquei surpresa, agradecida e assustada, mas naquela hora poderíamos ir lá? Já passava das dez da noite. Apesar de ser mais barato do que eu vinha pagando (o quarto custava R$ 150 por mês), com que dinheiro eu iria pagar? E a resposta veio dos meus amigos: “do mesmo jeito que você tem conseguido pagar até hoje a Marina”. 314 bell.pmd 314 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Quando saímos do encontro, eu e Edilson fomos para a pensão. Ele tinha razão, o dono morava lá com a sua família e estava acordado. O nome dele era Odete e sua esposa era chamada de Nega. Ele foi bem direto: mostrou o quarto e disse o valor de R$ 150, como o Edilson tinha falado, mas eu precisava pagar adiantado e não tinha esse dinheiro. Então ele facilitou. Eu poderia pagar metade (R$ 75) e a outra parte em quinze dias. Eu não tinha escolha. Dormir na rua louca era uma coisa, mas careta e em recuperação, nem pensar. Apoiada pelo Edilson, que me incentivava dizendo que tudo daria certo, fechei o negócio. Os quartos, acho que uns dez de cada lado, ficavam num grande corredor, quase todos com o mesmo tamanho. Tinha também o tan- que para lavar roupas, escovar os dentes e limpar o rosto, varais estendidos no corredor e, além dos banheiros, que eram dois ou três, tinha o local com um chuveiro. Nega apareceu e perguntou se eu tinha roupa de cama. Não, eu não tinha. Logo ela voltou com travesseiro e lençol para mim. O quarto era ao lado do ocupado pelo Edilson, tinha um metro e noventa por um metro e oitenta. Isso mesmo, pois tempos depois eu medi. Tinha uma cama que nem sei como foi colocada ali. Se quisesse mudar a posição dela, não poderia. Estava colada na parede, não dava nem para puxar para limpar, que dirá mudar a posição, ficavam faltando dez centímetros. Fora a cama, tinha uma cômoda com várias gavetas e duas prateleiras em cima. Passei a ter um lugar só meu para morar. Fazia muitos anos que não tinha mais esse sentimento de posse. E, acima de tudo, o que tinha naquele lugar era paz. Arrumei a cama e me deitei. Quando apaguei a luz, começaram os pensamentos de medo e insegurança. Como iria arrumar R$ 75 para pagar a pensão no outro dia? Durante esses cinco meses, eu havia gastado todas as minhas possibilidades fazendo verdadeiros malabarismos. Dormi pedindo a Deus que me mostrasse um caminho, que me ajudasse a conseguir o dinheiro para a pensão de forma limpa e honesta. 315 bell.pmd 315 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Em recuperação, sempre tive muita insônia e, nessa noite, acordei antes de o dia clarear. Na esquina, tinha um bar que eu sabia que ficava aberto 24 horas. Queria tomar um café e fui até lá. Qual não foi a minha surpresa: encontrei um amigo de recuperação que não estava nada bem e ele veio ao meu encontro. Só quem é alcoólatra ou dependente químico sabe qual é o tamanho da dor de ter recaído, principalmente para quem estava em recuperação por três anos, como era o caso dele. Ele se aproximou, nos abraçamos e sentamos. Eu para tomar um café, ele para continuar com a cerveja e o conhaque. Pela hora e pelo seu estado, dava para ver que havia muito ele estava ali bebendo. Ficamos conversando por um bom tempo, ou melhor, fiquei ouvindo. Assim, esqueci das minhas dificuldades. Ele era mestre-de-obras e, no momento, trabalhava numa obra em Santos, onde precisava estar logo cedo. Apesar de seu alto teor alcoólico, a seu pedido o acompanhei até a outra cidade. Ele passou pela obra, deu as instruções e fomos embora. Mas, como qualquer dependente de álcool ou drogas, ele parou num bar em que era conhecido e recomeçou a beber. Conversamos até quase a hora do almoço. Por fim, contei a minha história. Ele já conhecia uma parte de ouvir no grupo de recuperação e eu falei da mudança para a pensão. Não justificando, mas esclarecendo: quando encontrei com ele, não tinha a menor idéia do que ele fazia e se tinha dinheiro. Ao contrário, sua aparência sempre foi meio largada, roupas simples. Somente agora, quando ele abria o porta-malas para pegar os R$ 75 que eu precisava, fiquei sabendo melhor qual era o seu poder econômico. O que ficava muito claro é que eu tinha um Deus que não me abandonava, que eu tinha uma estrela muito grande ou muita sorte. Converso muito sobre isso com minha psicóloga, Monika von Koss. Não sou mau-caráter, nem fico por aí aplicando golpes para sobreviver. Por muitas vezes na vida, essa foi minha saída, mas hoje o que faço é viver uma vida honesta e calcada em princípios morais e éticos. Como diria um grande conselheiro em dependência química, o Ivan: 316 bell.pmd 316 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas — Não adianta parar de usar drogas e continuar roubando cavalos. Hoje, nem os arreios guardo mais. Quando meu amigo me deixou na pensão, depois de muita con- versa, eu tinha os R$ 75 para pagar o meu compromisso. E tinha mais quinze dias para arrumar os outros R$ 75. Passar a viver em São Vicente não tinha sido uma escolha feita com planejamento, mas eu ia levando a vida como ela se apresentava. Numa madrugada chuvosa, acordei assustada com o barulho nas telhas e meu susto foi maior ainda quando levantei: o o chão do quarto estava todo molhado e meu chinelo, também. Fiquei com vontade de ir ao banheiro, mas debaixo daquela chuva? E aí uma onda de autopiedade me invadiu. Fiquei ali chorando, sem saber o que fazer para mudar minha vida. Foi nessa época que conheci um vereador muito simpático e acolhedor que, de alguma forma, também me ajudou. Só o fato de ir à Câmara dos Vereadores conversar com ele já me ajudava bastante. Ele me tratava com respeito, me pedia orçamentos artísticos para alguns projetos. Assim, eu resgatava a produtora que tinha ficado lá atrás, com o uso das drogas. Teve um mês que eu não tinha como pagar, e uma amiga de tratamento, Raquel, generosamente pagou o aluguel para mim. Eu tinha feito várias amizades e freqüentava com total assiduidade o programa para dependentes químicos. Com isso, já fazia quase sete meses que eu não usava nada. Em dezembro, para ser mais exata no dia 13, novamente aconteceu o pior. Eu vivia completamente solta, sem nenhuma responsabilidade além de pagar o aluguel. Refeições eu quase não fazia, tinha aprendido a comprar cem gramas de mussarela ou mortadela, mais dois ou três pãezinhos, que eram vendidos em oferta a sete centavos. Com isso, passava o dia gastando apenas um real. Quando estava com muita vontade de comer uma refeição mesmo, procurava algum amigo, como o Mário, que trabalhava como enfermeiro num hospital, e almoçava com como se fosse uma funcionária, com o tíquete 317 bell.pmd 317 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES dele. Ou então procurava a tão carinhosa e solidária dona Loyde, uma pessoa maravilhosa, generosa, que muito me ouviu e ajudou. Todo o pessoal que eu tinha conhecido no tratamento do posto de saúde também ajudava muito. Acontece que, num certo dia ensolarado, fui até a praia que ficava a dois quarteirões da pensão. Era a melhor forma de matar o tempo. Na realidade, meu comportamento em nada ajudava minha recuperação. Eu podia não “roubar cavalos”, mas a ociosidade e o total desapego à vida (uma coisa bem indiferente, “tanto faz como tanto fez”) não se caracterizavam como uma recuperação. Entre outras coisas, tinha que haver responsabilidade com a vida e comigo mesma. Em mais um dia sem ter o que fazer, fui à praia. Não fiquei sentada na areia, andei em direção a umas pedras e sentei ali, olhando para o mar. De repente, um homem me pediu emprestado o meu cigarro para acender outro ali perto. Perguntei por que ele não trouxe o cigarro para acender. Eu nunca tinha cigarros e não queria ficar desperdiçando. Ele, sem a menor parcimônia, respondeu que era para acender um baseado. Fazia muito tempo que só ouvia falar de drogas no programa de recuperação. Como se estivesse enfeitiçada, perguntei ao homem se poderia fumar com ele. E foi assim, sem mais nem menos, que em segundos recaí nas drogas. Depois que eu fumei, fiquei completamente louca. Acho que porque eu não usava nada fazia quase sete meses. Fiquei ali, sem nem sequer conseguir me levantar e voltar para a areia. Foi então que vi que a toda hora se formava um grupinho (ou mais de um) fumando maconha naquele local. Sem a menor cerimônia, passei a pedir para dar uma fumadinha. Ou, na linguagem dos usuários: “Dá para dar um pega?” Nesse dia, voltaram imediatamente a minha compulsão e obsessão pelas drogas. Não pensava mais em nada, não queria mais nada a não ser ir às pedras da praia da Biquinha para fumar um baseado. Se aparecessem vinte turmas, para as vinte eu pedia para fumar. Mas uma coisa que não combina com maconha é não ter dinheiro para 318 bell.pmd 318 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas comer, e comer muito,por causa da famosa “larica”. E eu não tinha como. Agora, então, que nem mais a minha abstinência eu tinha, como ficaria minha vida? Porque as pessoas que me ajudavam também estavam em recuperação e jamais iriam querer colocar isso em risco com a minha presença louca por perto. Eu tinha mudado de lado, eu tinha mudado de turma. Acordava muito cedo e, por incrível que pareça, mesmo bem cedo, antes das sete da manhã, já tinha gente fumando. Nessas horas era até melhor, porque na maioria das vezes era alguém sozinho e dava para eu fumar bem mais. Minha aparência estava completamente mudada. Por passar muito tempo na praia, estava superbronzeada. Na pensão, não tinha como esconder ou justificar o meu comportamento estranho, apesar de não dever satisfações a ninguém, principalmente quando louca, pois assim é que eu não me importava com nada. Eu fazia malabarismo para ter dinheiro para comer alguma coisa e voltei a pedir dinheiro nas ruas. Não queria muito, com um real eu fazia meus lanches e ia agüentando. Ficar muito tempo na praia dava sede. Um dia, perto das pedras, tinha um homem com um copão de alguma coisa e eu, sem o menor constrangimento, pedi para tomar um pouco. Passamos o dia conversando e bebendo, bebida alcoólica, batidas, que eu até então não havia voltado a beber. Cheguei bêbada à pensão. Para alcançar o meu quarto, precisava passar pela sala, pela porta da cozinha e pela janela do quarto da Nega e do Odete — acho que era uma forma estratégica para controlar todos que ali moravam. Eles faziam isso muito bem e, nesse aspecto, a pensão era supertranqüila. As duas maiores confusões que vi foram: uma comigo e o Edilson, que recaiu também e nunca mais me deixou em paz se dizendo apaixonado por mim; outra, com dois rapazes que, por incrível que pareça, também eram dependentes químicos e quando voltaram a usar drogas foram direto para o crack. Certo dia, notei na minha cama uns rolinhos pretos bem pequeninos. Sacudi o lençol, arrumei a cama e tudo bem. Quando 319 bell.pmd 319 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES voltei à noite, na hora que eu abri a porta do quarto, um rato passou correndo em cima da minha cama. Dei um grito tão forte que a Nega, o Odete e alguns vizinhos vieram ver o que era. Quando contei, parecia que eu tinha dito que um gatinho ou uma formiga estavam no meu quarto. Para eles, era a coisa mais natural do mundo. A partir desse dia, não tive mais um minuto de sossego e, quando eu chegava, batia na porta para fazer barulho e meu companheiro rato ir embora, pois era a minha vez de dormir. Na noite de Natal, a cidade lotada, as praias também, e eu tinha o meu aluguel pago somente até janeiro. Até pensei em ir atrás de algum trabalho para fazer na temporada, mas a obsessão pelas drogas já tinha se instalado. Eu só não estava usando cocaína porque não tinha dinheiro para comprar. Nessa noite, sem ter aonde ir e não querendo nada com recuperação — ao contrário, o que eu queria era usar —, fui dormir logo depois de ter chegado da praia, como sempre bem louca e bêbada. No dia 25, Nega, ao me ver, perguntou onde eu tinha passado a noite de Natal e eu disse que dormi. Ela falou que não sabia que eu estava no quarto, senão teria me convidado para cear com eles. Então me chamou para almoçar. Nesse dia, diminuí na loucura. Fazia muitos dias que não comia uma refeição, estava vivendo de lanches e muitas vezes nem isso eu tinha. A comida da Nega era uma delícia e aceitei o convite com muita gratidão. Eu gostava muito da Nega, dos filhos dela e do Odete também. Ele venceu muitas dificuldades e agora tinha o seu próprio negócio. Várias vezes ele me contou que tinha também passado pelo Brás, em São Paulo. O Brás era um local de referência para pessoas que vinham de outras cidades sem ter onde morar. Lá havia um albergue gigante onde tinha assistente social, o pessoal providenciava documentos... Apesar disso, depois de sair de lá, poucos conseguiam ter uma vida decente. O Odete foi um desses. Num dos dias em que estava na praia, veio um rapaz correndo e foi direto para as pedras e se escondeu atrás de uma delas. Na mesma hora me levantei e fui atrás dele. Perguntei se podia fumar com ele. 320 bell.pmd 320 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Qual não foi a minha surpresa: apesar do sol na cabeça, o rapaz pegou a carteira e em cima dela esticou duas carreiras bem grossas de cocaína. Jamais poderia imaginar que alguém conseguisse cheirar na praia. Foi só ver a cocaína, que me deu uma grande vontade de ir ao banheiro. Depois de usar, então... Saí dali direto para um shopping ali perto para ir ao banheiro. Depois disso, o que eu queria era mais cocaína. Mas como? Eu não tinha um tostão e nem sabia onde vendiam pó por ali. Horas mais tarde, encontrei um amigo de recuperação e ele me disse para retomar o tratamento, que as pessoas sentiam minha falta. Mas eu não queria saber de nada e rapidamente tentei tirar algum dinheiro dele para usar cocaína. Ele me deu R$ 5. Não dava para usar drogas porque eu não sabia o caminho para ir buscar — de qualquer forma, para onde eu fosse teria que pegar um ônibus e aí é que o dinheiro não iria dar mesmo. Com todo esse movimento, já tinha passado o efeito da cocaína e eu estava com fome. Ali na praça da Biquinha tem vários quiosques de alimentação, onde resolvi comer. Apesar de ser pouco, o dinheiro daria para o almoço e o jantar, mas, sem qualquer prudência, gastei o que tinha em um segundo. Alguns dias antes do Natal, conheci um homem muito bonito que estava com um casal que morava na pensão. Esse casal bebia bastante e por isso eu não mantinha muito contato com eles. O que antes me afastava agora era motivo de aproximação: ter como beber. Eles me chamaram e pude ver que o homem, além de bonito, estava com dinheiro, pagava tudo com muita alegria. Eles tomavam cerveja, havia várias garrafas vazias na mesa, mas eu queria ir para “as cabeças”. De cara pedi um conhaque e depois continuei com a cerveja. Tudo o que queria era enlouquecer, mas era só eu beber um pouquinho, que tudo o que eu queria era pó, pó, pó... O homem continuava a pedir cervejas e, depois de um certo tempo, estávamos todos bêbados. Nesse bar tinha uma vitrola de música (não me lembro o nome agora, aquelas em que colocamos as fichas e 321 bell.pmd 321 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES escolhemos as músicas). Pedi para colocar uma e o Roberto comprou várias fichas para mim. Quando fui escolher, logo vi uma música cantada pelo Chitãozinho e Xororó ao vivo num especial da Globo, o “Amigos”. Eles cantavam essa música com participação especial da Simone. A música “Luar do Sertão” por si já era meio triste, mais as minhas recordações... De repente, tudo o que aconteceu foi que eu me senti um gigante. Fiquei eufórica ali, naquele bar sujo, escuro, que ficava aberto 24 horas e, em poucos minutos, para mostrar que eu tinha algum poder, fosse ele qual fosse, comecei a paquerar declaradamente o tal Roberto. Logo depois estávamos no meu quartinho, protegidos pela Alice para a Nega e o Odete não perceberem. Transamos rapidamente e foi um lixo, sexo sem nenhuma qualidade, ambos querendo ostentar o que não éramos e o que não tínhamos. Roberto continuou mais uns dias por ali, fazendo suas festinhas, pagando muita bebida, até que um dia sumiu deixando uma conta de R$ 300 no bar. Quando se usa drogas, uma coisa puxa a outra. Uns dias depois, ouvi alguém me chamar na praia da Biquinha. Ali nas pedras eu procurava e não reconhecia ninguém. Nisso um rapaz veio até onde eu estava e me perguntou: — Esqueceu de mim? Quando olhei bem para ele vi um rosto conhecido, mas não consegui identificar de onde. Ele aliviou minha memória: — Do Instituto Morumbi de Psiquiatria. Aí eu me lembrei: era o Marcelo, aquele que, a cada dia, aparecia com um modelito diferente e todo impregnado por tantos remédios que o faziam tomar. Nos abraçamos e fui com ele para a pedra em que estavam mais dois amigos seus, um homem de uns quarenta anos e um rapaz de uns vinte e poucos, tipo o Marcelo. Eles estavam enrolando um baseado dos grandes. Com alegria, eu e Marcelo começamos a conversar e a contar para os outros dois as nossas maluquices naquele hospital. Por ele, também obtive notícias da Gláucia. Não foram as melhores: ela estava em São Paulo, se prostituindo nas ruas do Brás. 322 bell.pmd 322 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Os lábios do amigo mais velho do Marcelo estavam machucados, meio que queimados, e deduzi que deveria ser por uso de crack. Perguntei onde eles estavam hospedados e a resposta foi qualquer coisa meio enrolada, uma casa não sei onde, e percebi que não era da minha conta. A coisa ali não tinha o tipo de ser honesta. Apesar de ainda estar em dia com a pensão, eu tinha uma certa vergonha da Nega e do Odete. Passar ali pela casa deles para ir ao meu quartinho era o maior suplício. Eles conheciam a minha história e eram bem calejados, conheciam bem a vida e estava na cara que eu tinha recaído. Antes, minhas noites eram ocupadas com os grupos de recuperação. Agora eu não tinha aonde ir, dormia cedo, na maioria das vezes muito louca ou bêbada, acordava no meio da madrugada e ia para o bar da esquina que tinha a música da vitrola de fichas. Com ou sem dinheiro, alguma bebida eu acabava por beber. Quando o dia amanhecia, ia para a praia recomeçar mais um dia de loucuras e vazio. Minha visão era de túnel. Não enxergava nada além das drogas e a praia onde eu conseguia usar de graça. Fora isso, era engraçado morar numa cidade pequena e com praia, local onde numa determinada época tudo se modificava. O verão transformava as pessoas que moravam lá e mais as que vinham de fora. A praia ficava lotada, as hospedarias e pensões também. Na que eu morava estava o maior movimento. Finalmente chegou o dia 31 de dezembro, virada do ano, quando haveria queima de fogos na praia. Eu estava com o Marcelo, seus dois amigos e mais umas meninas de uma família classe média que estavam passando o verão ali. Não deu outra: à meia-noite, estouramos vários champanhes dos ofertados para Iemanjá, mas tomamos muito mesmo! Eu tinha ganho R$ 10 de um amigo e usei para comprar maconha. Eu já era famosa, tinha virado a “Tiazinha muito louca da Biquinha”. Toda a molecada que fumava nas pedras me conhecia e eu passei a ter de quem comprar drogas. Um adolescente que trabalhava no supermercado defronte à pensão era um deles. Além de fumar, ele 323 bell.pmd 323 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES também usava cocaína. Era isso que me interessava, mas fiquei meio com medo de pedir logo a cocaína, perder meu dinheiro e não poder fazer nada. Então, peguei leve, pedi para me trazer uma bolsinha de R$ 5 de maconha, que ele compraria na hora do almoço. Eu estava na porta da pensão, aguardando ansiosa. Nesse momento, já nem me preocupava mais com a Nega e seu marido. Assim que o rapaz chegou, fui para o meu quarto, fiz dois baseados e escondi o restante. Vi que era mais bem-servida do que em São Paulo. Imagine, em São Paulo acho que nem tem nada de R$ 5 (talvez uma pedrinha de crack). Eu também não me importava com o fato de ele ser um adolescente, eu já tinha perdido qualquer bom senso. Fui para a praia, era a primeira vez que eu convidaria alguém para fumar. Antes eu só pedia. Isso foi bom para mim, pois o pessoal já estava cansado de me deixar dar uns “pegas”. Depois do réveillon, comecei a ficar cansada de viver bêbada, tendo que pedir dinheiro na rua para comer alguma coisa, ficar na praia o dia inteiro. A solidão era grande e triste. Marina morava a dois quarteirões da pensão, mas ela não sabia onde eu estava. Dessa vez, fui eu quem a procurou. Telefonei para ela no dia 2 de janeiro com a desculpa de desejar Feliz Ano Novo. Começamos a conversar e eu a convidei para darmos uma volta na praia. Conversamos bastante, fumei um baseado, depois a Marina me convidou para ir à sua casa. E, assim, mais uma vez ficamos de bem. Chegou o dia de pagar a pensão e eu não tinha de onde tirar o dinheiro. Para evitar a cobrança, comecei a dormir na casa da Marina. Ali no centro de São Vicente tudo era perto. Cidade pequena. Al- guns dias depois, indo para a praia com algumas pessoas, encontrei a Nega. Eles estavam com uma barraca de bebidas e sanduíches. Fiquei bastante constrangida e pedi um tempo para pagar o aluguel. Nega falou para eu voltar para a pensão e conversar com o Odete. Disse também que já sabia que eu devia estar na casa da Marina. Voltei, conversei com ele e, depois de uma grande lição de moral que tive de ouvir, ganhei um prazo para acertar o aluguel. Mas eu pensava: de que me adiantava o prazo se eu não tinha de onde tirar o 324 bell.pmd 324 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas dinheiro? Voltar para a casa da Marina, nem pensar. Ter experimentado morar só, após minha mãe ter falecido, tinha me dado uma sensação tão boa de paz e liberdade, que não trocaria isso por nada. Bem, por nada não foi, eu troquei o meu sossego, a minha liberdade, novamente pelas drogas. Minhas idas às pedras da praia da Biquinha continuavam. Eu tinha emagrecido bastante, não tinha dinheiro para nada, cheguei a pegar as frutas que caíam no chão da feira para comer. E não mudava meu comportamento, não parava de usar. No fundo, depois de ter conhecido a possibilidade de recuperação, não dava para continuar usando sossegada. Essa frase se tornou conhecida nos tratamentos de recuperação. Passei a ter uma escolha, um outro caminho que poderia seguir. Foi assim que, numa manhã, levantei e fui procurar a psicóloga do Posto de Saúde de São Vicente. Paula Jayme Araújo era a psicóloga do grupo de terapia do Prodec e também tinha um trabalho de muita importância com os soropositivos. Ela já me conhecia um pouco, afinal eu tinha ficado sete meses em recuperação. Eu queria fazer terapia individual, pedi a ela para me ajudar e ela aceitou. Fui ainda a duas sessões depois de ter bebido e, no dia 5 de fevereiro de 1998, voltei a ficar em abstinência de álcool e drogas. Alguns dias depois, caí numa depressão profunda. Estava cansada de tentar e não conseguir. Quando eu parava de usar drogas, mais uma vez percebia que tinha fracassado. Quando retornei para a recuperação, mudei de lado novamente. As companhias também mudaram. César era uma figura, eu gostava muito dele. Ríamos muito e ele me ajudava bastante também. Mas eu tinha de mudar esse hábito enraizado de viver de empréstimos que eu nunca teria como pagar e da solidariedade das pessoas que estavam à minha volta. Um dia, ele me disse que sua esposa, que fazia trufas, sabia de um trabalho de temporada. Ele não sabia me explicar direito o que era, mas ficou marcado que eu me encontraria com a esposa dele no dia seguinte, no posto telefônico da Praia Grande. Fui dormir na expectativa, nosso encon 325 bell.pmd 325 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES tro seria à tarde e eu fiquei na maior ansiedade desde que acordei. Preparei a melhor roupa que tinha e me arrumei com esmero, só esse ato e a possibilidade de um trabalho já me fizeram sentir superbem. Eu não a conhecia, mas o César a descreveu muito bem. Assim que chegou, soube quem era — e com ela também aconteceu a mesma coisa. Ela foi muito simpática e me explicou mais ou menos qual era o serviço: o gerente da telefônica, que era cliente dela comprando suas trufas, perguntou se ela não conhecia alguém para trabalhar com ele na temporada. Ele e a família tinham um carrinho de salgados, refrigerantes e cervejas na praia e estavam precisando de alguém para fritar os salgados. Única e exclusivamente fritar os salgados, enfatizou ele. A aparência dele era ótima, um homem alto e bem-vestido. Fiquei surpresa ao saber que ele trabalhava com o carrinho na praia nos finais de semana. Ficou marcado que eu começaria no final de semana, mas ele frisou: — Está tudo certo mesmo? Eu ganharia R$ 15 por dia. Chegaria às nove horas e sairia às cinco da tarde, mais ou menos. Acertamos que eu, no sábado pela manhã, procuraria o cunhado dele, Keiji, um japonês ou descendente (é claro, pelo nome), que me daria as orientações a respeito do trabalho. Carrinhos de batidas, salgados e lanches eu via aos montes em todas as praias em que eu passava: Santos, São Vicente e mesmo na Praia Grande. Mas nada se comparava àquele carrinho em que fui trabalhar, o “Palomar”. Os carrinhos ficavam a poucos metros um do outro e tinham os preços mais caros – por incrível que pareça, tinham a maior freguesia também. Aquilo parecia mais um oásis na praia. Eles eram de uma família de japoneses e descendentes, e o único brasileiro era o marido da irmã do Keiji. Os pais ficavam em casa. A mãe, com a ajuda da esposa do Keiji, fazia os pastéis mais gostosos que já comi (depois dos que minha mãe fazia, que eram inigualáveis). 326 bell.pmd 326 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Os lanches eram ótimos e tinha a porção de peixe porquinho, que era o que eu cuidaria. O mais importante era que eles ficassem sequinhos. Para isso, tinha de se ter uma atenção redobrada com a gordura. Hoje, além do carrinho na praia, eles têm um restaurante japonês também. Chegaram inclusive a me convidar para trabalhar lá, até com a moradia paga, mas isso por alguma razão não era para mim. E não era por falta de humildade, não, mas principalmente por uma confusão mental, um vazio — e o fato de saber que, algum dia, quando acontecesse, eu sentiria o que era para eu fazer da minha vida. E isso aconteceu: é este livro que estou escrevendo. Moral da história: penei pra caramba até acertar a fritar os tais peixes que eu nem conhecia. O movimento era uma loucura e, quando o Carnaval terminou, eles foram muito generosos e deram um dinheiro a mais para os funcionários. Foi assim que, nesse dia, cheguei à pensão e entreguei todo o dinheiro que eu tinha ganho para o Odete, diminuindo bem a minha dívida. Passados alguns dias, fui caindo no mesmo movimento anterior. Não tinha expectativa de vida nenhuma, voltei a passar dificuldades e o aluguel continuava a correr. Eu sabia também, desde quando fui paciente do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, que precisava de acompanhamento médico. Em São Vicente mesmo, bem pertinho da pensão, havia um ambulatório específico de saúde mental e, procurando atendimento, minha consulta foi marcada para dali a alguns dias. Cidade pequena, era tudo perto: posto de saúde de várias especialidades, posto de saúde para portadores do HIV, posto de saúde mental. Quase todos se conheciam, e um tratamento muitas vezes era ligado a outro, como era o meu caso. Na minha primeira consulta no posto de saúde mental, a doutora que me atendeu solicitou que eu retornasse no dia seguinte com um familiar. Mas que família? Minha mãe já tinha falecido, então alguém próximo e de confiança servia. Aí tudo bem, eu tinha inúmeros amigos, pessoas que aprendi a amar e se tornaram importantes na minha vida. Detalhe: quando em abstinência total. 327 bell.pmd 327 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Pedi para o William ir comigo. Ele tem uma clínica para dependentes químicos e foi na maior boa vontade. William ouviu da doutora que, em muitos casos de depressão, a dor era tão grande que a droga no princípio funciona até como alívio, mas, infelizmente, acaba se tornando um problema maior depois. A médica também pediu que eu não ficasse com a medicação para que, em caso de um descontrole emocional maior, não fizesse nenhuma maluquice com aqueles remédios, como tomar todos de uma vez só. Então, diariamente o William saía de sua casa para me levar os remédios. Tinha uma dose noturna, que era em gotas. Era a principal e tinha que ficar longe das minhas mãos para eu não fazer uso indevido. Então, era até engraçado: ele entrava, eu abria a boca, ele pingava o remédio e ia embora. O programa de recuperação e os grupos de apoio me ajudavam a viver o dia-a-dia, mas, com a retirada das drogas e do álcool, eu estava vazia, não tinha objetivo de vida, não trabalhava, passava o dia na maioria das vezes com um real que eu transformava em três lanches, como já contei anteriormente. Eu voltava dos grupos de recuperação à noite, dormia e, no novo dia que começava, não tinha expectativa nenhuma de melhora. Certo dia, eu seguia para um grupo de recuperação em Santos quando deparei com um cartaz gigantesco anunciando um show: “Roberto Carlos”. Embaixo, no mesmo cartaz: “Produção: João Tadeu”. Na hora fiquei muito emocionada, o filme da minha vida profissional passou pela minha cabeça e, no mesmo dia, telefonei para São Paulo para falar com o Tadeu. O número do telefone era o mesmo. Quando ele me atendeu, foi um momento de muita alegria. Afinal, eu estava em recuperação, bem longe daquela pessoa em quem eu tinha me tornado e que ele tinha visto várias vezes quando eu o procurei (sem um dente da frente, suja, completamente drogada ou bêbada e ainda pedindo al- gum dinheiro, fosse quanto fosse, até um real servia, como várias vezes pedi para a assistente dele, Márcia Rigger). Tudo bem, eu estava melhor, mas continuava sem trabalho e sem dinheiro. No primeiro momento, falei como Tadeu a respeito do 328 bell.pmd 328 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas meu aluguel na pensão, afinal era tão baixo se comparado com os valores do show business. Infelizmente, Tadeu tinha sofrido um assalto num show com o Roberto e teve um prejuízo de mais de R$ 30 mil naqueles dias. De alguma forma, porém, e como sempre foi com todos, ele poderia ver alguma coisa para eu fazer e ganhar algum dinheiro. Esse era o Tadeu que eu conhecia, sempre generoso e solidário. Ficou marcado que eu iria, no outro dia, para São Paulo para conversarmos pessoalmente. Como sempre, foram meus amigos de recuperação que arrumaram o dinheiro para a passagem. Era a primeira vez que eu subia a serra sem estar drogada, bêbada. Eu tinha um destino certo e isso era uma grande diferença. Sentia um misto de ansiedade, emoção, gratidão ao Tadeu. Fazia o caminho para o escritório como uma produtora artística novamente. Era demais! Mas, ao mesmo tempo, eu sentia um medo imenso, uma insegurança total em relação à minha abstinência. Depois da morte do Júnior, Tadeu fez diretamente alguns shows com o Roberto. No momento, trabalhava com duas duplas sertanejas, uma iniciando a carreira (Ricardo e Eduardo, de Brasília, ainda com CD independente) e outra, Eric e Henrique, já contratados por uma gravadora, com um bom esquema de trabalho, principalmente no aspecto financeiro. Tadeu tinha conseguido um sócio investidor e as coisas estavam caminhando com um pouco de tranqüilidade. Conversamos bastante e ele me ofereceu trabalho ali no escritório, com o Ricardo e o Eduardo. O que ele poderia me pagar não era muito, mas daria para viver se eu já tivesse uma residência. Eu estava confusa, foi muita informação ao mesmo tempo. Desde setembro de 1994 eu não trabalhava numa produtora em São Paulo e, ainda por cima, limpa de qualquer droga e álcool. Tremi na base. Voltei no mesmo dia para São Vicente. Conforme o ônibus descia a serra, fui me acalmando e entrando no meu ritmo. Infelizmente ainda não dava, não estava pronta para voltar a trabalhar no meio artístico e, naquele momento, não sabia nem se algum dia voltaria. 329 bell.pmd 329 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Apesar de amar meu trabalho, liguei para o Tadeu para agradecer e explicar minha dificuldade. Ele falou que, quando eu quisesse, poderia procurá-lo. Os dias iam passando e minha dívida na pensão, aumentando nova- mente. Eu tinha de conseguir um trabalho, mas não fazia idéia de qual e muito menos onde. Por ironia do destino, em frente à pensão, mas bem na frente mesmo, tinha um estúdio de gravação de CD e eles sonorizavam eventos e shows. Quase todos os finais de semana eu via os caminhões parados e eles carregando os equipamentos. Aquilo, sim, era a minha vida e um dia procurei o proprietário do estúdio. O nome dele era Arnaldo, um nissei. Na mesma hora gostei dele e comecei a falar algumas das palavras em japonês que ainda lembro. Apesar de ser descendente de japoneses, que são econômicos nas palavras, Arnaldo conversou bastante e ficamos a relembrar de grandes shows em que trabalhamos. Por fim, descobrimos que tínhamos trabalhado juntos em alguns deles. No estúdio do Arnaldo não tinha nada para eu fazer, até o assistente dele ficava sem fazer nada muitas vezes. Mas se ele soubesse de alguma coisa, me avisaria e quando eu quisesse ou precisasse, ele estaria à disposição. As prefeituras realizavam nas praias grandes shows no verão e também no inverno. Praticamente tinha show o ano inteiro. Eu ficava olhando para aqueles palcos, pensando: será que nunca mais iria voltar a trabalhar no show business. Eu amava tanto aquilo tudo, ficava horas admirando as montagens de palco, som e luz. Na Baixada, existiam muitos grupos de pagode, que era a moda no momento. O Arnaldo me falou a respeito de um deles que achava que tinha futuro. Eu ouvi uma gravação e realmente eles eram muito bons. Entretanto, grupo de pagode para mim é aquela mesmice, um som repetitivo com letras mais repetitivas ainda. Mas trabalho é trabalho. Nós resolvemos nos unir e produzir o grupo. Trabalhei com afinco durante dois meses. Mas sem dinheiro para investir nos meninos, sabia que não sairíamos do lugar. Mesmo na Baixada, eles seriam somente um grupo a mais. Por outro lado, eu 330 bell.pmd 330 8/2/2006, 08:26 também não tinha dinheiro para me sustentar. Ganhei em dois meses de trabalho uma pequena comissão de R$ 50, mas que foi de grande valia para mim. Eu pensava: por que eu não consigo mais shows? Resolvi ir às secretarias de Cultura, tentei daqui, tentei dali e tinha ficado certo com os meninos que, nos shows que eles já conseguiam sozinhos, não teríamos comissão. Eles já tocavam em todos os bares, casas noturnas, festivais de verão e inverno. Então não sobrava nenhum lugar novo. Ainda por cima, eu ia para os shows e depois não tinha como voltar para a pensão. Tinha uma van que trabalhava com eles. Quando o caminho coincidia, o motorista me deixava em casa. Outra coisa que foi ficando muito clara para mim era que continuar vivendo naquela ansiedade, andando em lugares onde quase todo mundo estava bebendo, fora os movimentos de drogas que eu detectava, não estava me fazendo bem. Ao contrário: cada vez que eu contava para alguém o que tinha acontecido nos shows, sempre me perguntavam quanto eu tinha ganhado. Eu sabia que não tinha direito a receber nenhuma comissão nos shows que eles já agendavam antes de mim, mas quem é que entendia isso? Somente as pessoas do meio artístico, que ali éramos o Arnaldo e eu. Certo dia, com uma idéia que tive, fui falar com o secretário da Cultura de São Vicente. Coloquei a minha melhor roupa e, como não tinha dinheiro, fui a pé. Era bem longe e, quando eu estava chegando perto, senti que minhas forças tinham acabado, eu estava em jejum e a ponto de desmaiar. No outro quarteirão tinha uma padaria. Entrei e fui ao caixa, onde estava o proprietário. Expliquei minha situação para um homem surpreso com o que estava ouvindo por causa da minha boa aparência. Então ele pediu que me servissem um pedaço de bolo e café com leite, agradeci demais e prometi que voltaria para pagar. Finalmente cheguei à Secretaria da Cultura. Fiquei bem-disposta só de entrar lá. Quando o secretário me atendeu, fiquei melhor ainda. Minha proposta era simples: quando ele fosse contratar algum artista ele pediria a mim também, como em uma licitação, e eu apresentaria os preços dos cachês que havia conseguido. 331 bell.pmd 331 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Por ter acesso direto a inúmeros artistas, eu tinha, sim, algumas vantagens. Fora isso, eu nunca coloquei um tostão acima do cachê fornecido pelo escritório do artista. Eu ficava satisfeita com os 10% de comissão e, muitas vezes, para ganhar uma concorrência, oferecia um cachê mais baixo ainda, cortando parte da minha comissão. Ele ficou interessado e pediu para eu colocar minhas idéias e propostas no papel. Pronto, lá vinha dificuldade, mas com os amigos de recuperação eu sabia que ela seria solucionada. Mário, um desses amigos, trabalhava como enfermeiro no principal hospital da cidade. Inúmeras vezes eu tinha ido lá almoçar no restaurante dos funcionários. Ele tinha comprado um computador fazia poucos dias e se prontificou a me ajudar. No seu dia de folga, ele passou o tempo todo na frente do computador, preparando a proposta para o secretário com o maior cuidado e esmero. O resultado foi excelente. No outro dia, entreguei o projeto ao secretário. Graças aos amigos novamente, fui de ônibus e paguei o homem da padaria. Agora era esperar. Só que, infelizmente, aos poucos fui conhecendo os meandros da politicagem. Um ganhava por fora aqui, outro ali e, mesmo quando chegou a campanha política e eu tinha preços muito bons, tudo era fechado de forma superfaturada — e sempre com as mesmas pessoas com quem estavam envolvidos, para que não corressem nenhum risco de serem descobertos. Trabalhei muito, mas muito mesmo, até papel para confecção de cartazes, santinhos de políticos, brindes com o nome dos candidatos eu consegui por um bom preço com o Fabrício, filho do Júnior, que agora trabalhava com papel. Eu ia para a casa da dona Loyde, chorava muito por ver tanta canalhice e não poder fazer nada, ainda por cima ter trabalhado tanto sem ter fechado nenhum negócio. Isso significava também não ter nenhum dinheiro para pagar a pensão, mesmo tendo saído muitos dias arrumada para trabalhar. Como o Odete iria compreender isso? Realmente era muito difícil. Mesmo com medicação, terapia e grupos de apoio, comecei a ficar deprimida novamente. Passei a ficar dentro do meu quartinho 332 bell.pmd 332 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas por muitas horas. Antes eu lia muito, mas agora nem ler eu queria e o Odete começou a me pressionar. Para fugir da pressão, fui para a casa da Marina e fiquei por lá um bom tempo. De novo encontrei com a Nega e ela falou que se eu não quisesse mais o quarto era só ir lá e entregar, pois, assim como estava, a minha conta só aumentava. Mas não era isso o que eu queria, eu queria continuar lá, na Marina as coisas estavam tranqüilas porque eu tinha a minha casa. Podia ser aquele quartinho, mas era a minha casa. Mas os meses passavam, a conta aumentava, eu estava cada vez mais magra e comecei a ter muita vontade de voltar a usar drogas. Eu continuava o tratamento, mas não agüentava mais ter os mesmos problemas. Eu não saía do lugar. Os amigos muitas vezes me ajudaram a dar algum dinheiro para acalmar um pouco o Odete, inclusive o Walace, de Curitiba, que estava trabalhando na comunidade de recuperação do William. Certa manhã, cansada de tudo e querendo realmente me mudar antes que eu fizesse uma besteira, liguei para o Tadeu e perguntei se ele ainda tinha algum trabalho para mim. Na hora ele disse que sim. Isso foi numa terça-feira de agosto de 1999. Fui para São Paulo, acertei com o Tadeu e ele manteve a oferta de R$ 600 fixos para eu acompanhar, trabalhar, enfim, com a dupla Ricardo e Eduardo. Agora eu precisava arrumar um lugar para morar. Pensei numa pensão, mas não sabia nem como começar a procurar isso em São Paulo, apesar de existirem milhares. Foi aí que me lembrei do Pedro. Sem pensar que não poderia conviver com alguém que usasse drogas, peguei o endereço dele no escritório e fui procurá-lo. Pedro estava morando no bairro do Tatuapé, numa casinha muito simpática, com mais um amigo, Roberto, e a irmã dele, Cristiane. Ele ficou tão emocionado com a minha chegada que chorou e, na hora, disse que por ele tudo bem, mas teria que falar com o Roberto, que, apesar do horário, dez da noite, ainda estava trabalhando. Ele era subgerente de uma das farmácias da Drogasil. Pedro abriu o forno e pegou a forma com bifes à parmegiana. Falou que eu iria jantar. Quanto tempo eu não sentia o que era uma 333 bell.pmd 333 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES casa... Fiquei muito emocionada e agradecida. Quando Roberto chegou, mesmo sem me conhecer, apenas com as referências do Pedro, disse que tudo bem, que poderia morar com eles. Pedro e Roberto dormiam na sala, deixando o quarto para a Cristiane. Se eu não me incomodasse, poderia dormir na sala também. Na hora aceitei. Em relação à parte financeira, eles disseram que eu não precisava me preocupar, eles já dividiam o aluguel e estava tudo certo, se eu quisesse poderia pagar uma conta de água ou luz. Mas eu não achava justo, afinal eu estaria trabalhando e ganhando, mesmo assim eles não aceitaram. Eu, no entanto, continuei preocupada com isso. Com a morte prematura e em circunstâncias horríveis do Robson e do Júnior, que nos davam muito trabalho, ficamos meio órfãos e o João nunca mais teve nenhum trabalho fixo. Deu para perceber que ele estava com dificuldades, apesar de não admitir. Ele estava no mesmo processo que eu havia muitos anos. Era engraçado, ele dizia que eu tinha problemas com drogas, mas ele não, ele controlava. Depois que Roberto jantou, Pedro começou a enrolar um baseado. Eu sabia que isso iria acontecer sempre, mas também sabia que não agüentava mais um dia sequer na Baixada. Depois de muito conversarmos, finalmente fomos dormir. No dia seguinte, acordei cedo e fui a São Vicente buscar minhas coisas. João me emprestou duas malas ótimas. Vendo aquelas malas pelas quais tantas vezes eu fui responsável quando viajávamos fazendo shows, fiquei com um nó na garganta. Chegando à pensão, fui logo falando com o Odete e a Nega. Eles ficaram surpresos, mas falei que deixaria meu endereço e iria pagan- do aos poucos o que eu devia a eles. Fui arrumar minhas coisas e fiquei surpresa. Nossa, quanta coisa eu tinha juntado nos nove meses em que tinha morado lá! Não ia dar para levar tudo de uma vez, pedi para a Nega guardar o que sobrou que depois eu viria buscar. Peguei minha bagagem sem falar com ninguém na pensão e me dirigi para a casa da Marina. Pensei em passar para me despedir e terminei dormindo lá. À noite, quando a Marina e eu estávamos 334 bell.pmd 334 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas conversando, ela falou que eu não ficaria muito tempo em recuperação morando com o João. Eu ouvi e fiquei quieta. No dia seguinte, saí logo cedo e, desde então, nunca mais a vi. Aquela fase da minha vida estava encerrada. 335 bell.pmd 335 8/2/2006, 08:26 A rede do bem Ao chegar à sala de recuperação, assim-assim, cabisbaixa, tímida, fui acolhida por um grupo de pessoas que, ainda hoje, são meus grandes e amados amigos. Foram fundamentais na minha recuperação e ainda são nos dias de hoje, passados seis anos, um mês e quatorze dias desde a noite em que lá entrei. Sim, estou finalmente durante todo esse tempo sem beber nem usar drogas. Conto os dias e as horas. Eu, que não ficava meia hora sem usar alguma coisa. Ouço com freqüência a pergunta: “O que aconteceu dessa vez para você parar de se drogar? Quando você sentiu que deu o clique? Por que desta vez está dando certo? O que mudou?” Não tenho resposta. Tive ajuda no início da década de 80 desde os primeiros sintomas de que eu estava completamente refém da cocaína. A cantora Simone, a quem sou eternamente grata, tentou de tudo para me ajudar. Nossos amigos em comum na época também. Minha mãe, suas amigas, meus amigos, psicólogos, médicos, todos, um a um, fizeram a sua parte em quase vinte anos de muita dor e perdas. Tive alta do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas no dia 10 de março de 2000, depois de mais uma internação de quatro meses, entre tantas. Continuei e continuo meu tratamento ambulatorial e participo de grupos de ajuda mútua, como fiz outras vezes. O que mudou? Não sei responder. 350 bell.pmd 350 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Tenho ido a escolas, empresas, faculdades, casas de família, clínicas. Onde me convidam para ir, eu vou contar a minha experiência, o que aconteceu na minha vida com o uso e abuso de drogas e o que faço para não voltar a usar. Chamam isso de palestras. Eu chamo de depoimento. Vou levando a mensagem de que dá para parar de usar, não importa o quão fundo alguém possa ter ido, que há vida e com qualidade após as drogas. E assim repito minha história quase diariamente para nunca esquecer de onde eu vim. Somente em março de 2005, depois de mais de cinco anos de abstinência, consegui alugar um cantinho só para mim. Aluguei minha casinha sem comprovante de renda, sem fiador, sem depósito, graças à confiança em mim depositada. Hoje minha recuperação é o meu maior patrimônio. E foi aí que deparei com o que realmente sobrou da minha vida: eu em recuperação. Parei de usar drogas aos 43 anos, quase sem dentes na boca e nem sequer mais de uma roupa para vestir. Sem moradia, sem móveis, sem trabalho, sem dinheiro, o ensino fundamental incompleto, com um currículo específico em produções artísticas. Esses anos não têm sido fáceis, mas com certeza nada se compara a estar nas ruas, completamente insana, tendo abandonado a mim mesma, sem qualquer perspectiva de melhora ou de vida. Hoje vejo a lua e as estrelas por opção. Mas não é fácil não voltar a usar. Sei que não posso. Uma cervejinha, um baseadinho, uma carreirinha e já era a recuperação, já era o livro, já eram as palestras, tudo ralo abaixo. Mas os hábitos, as sensações de falsa liberdade, estão arraigados na minha mente, no meu corpo. Durante vinte anos só conheci um caminho: se sentia dor, drogas; se sentia alegria, drogas; se não sentia nada, drogas para poder sentir. Conheço quatro saídas: parar, ou então clínica, cadeia ou cemitério. Por clínicas já passei. Estive na porta do cemitério várias vezes, o capeta me colocou pra fora do inferno e Deus me mandou de volta, dizendo que não era chegada a minha hora. Para a cadeia, não fui ou estou presa porque não fui pega. O limite é muito tênue, no momento que uso uma droga ilícita ou vou comprá-la, já estou tendo 351 bell.pmd 351 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES comportamento de risco, não dá para suavizar. Conheço inúmeras histórias de pessoas que estavam em sua casa fumando um baseadinho ou com o barulho de uma festa regada a cocaína e os vizinhos chamaram a polícia e elas foram presas. Vou com freqüência às penitenciárias levar a mensagem de que dá para parar de usar e ter qualidade de vida, que não precisa voltar para aquele lugar horrível quando sair. E o que vejo são meninas de vinte e poucos anos condenadas, trancafiadas e desesperadas. Muitas histórias são banais, mas terminaram em condenações. Outras histórias são assustadoras, um envolvimento aqui, outro ali e já era. Quando se está no olho do furacão tudo soa natural e não me venha me dizer: “ah, comigo não é assim”. Se não foi, um dia ainda será. É a doença do ainda: eu ainda não fiz isso, eu ainda não fiz aquilo. Mas, se continuar nessa vida, acabará por fazer. Contamina, não tem jeito. Não existe droga leve, um quilo de maconha e um quilo de cocaína têm o mesmo peso. Compromete, seqüela, leva pro mesmo buraco. É só uma questão de tempo. Liberdade é acordar e não precisar enrolar aquele baseado da manhã. E como fazer para não voltar a usar? Todos os dias tenho de reafirmar meu propósito de recuperação. Não dá para esquecer. Quanto mais perto da sociedade, mais perto estou de uma recaída. Começo a achar e me sentir “normal” e aí é que mora o perigo. Tenho de ter muito cuidado com meu comportamento, com minhas amizades. Não importa, pode ser a pessoa mais maravilhosa do mundo, mas se usa alguma coisa estou fora. A convivência é um grande risco. Posso não usar um dia, no outro também, mas de repente estou mais fragilizada por qualquer razão e pronto, lá estou eu, usando novamente. É uma guilhotina sempre pronta a despencar na minha cabeça. De repente, estou assistindo ao Jornal Nacional e lá está uma apreensão de drogas. Na hora, minha boca seca, sinto dor de barriga e o nome disso é fissura. Pego um saquinho de adoçante, parece um grama de cocaína. Vou ao dentista, atualmente Dr. Guilherme da Ortho Dent, e lá está ele com o seu vidrinho fazendo uma mistura de cimentinho, pronto, parece cocaína, é um inferno, não tenho sossego. 352 bell.pmd 352 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Quando estou numa reunião de ajuda mútua, tanto tem uma pessoa que não usa nada há vinte anos como aquela que chega doidona ainda com drogas no bolso. É um câncer da sociedade mundial, afetou todas as classes, a toda hora vemos alguém que teve uma boa educação, ótimas oportunidades, e lá estão seus pais reconhecendo o seu corpo no IML. A política antidrogas é um fracasso mundial e as drogas estão aí, a cada dia mais baratas, acessíveis e mortais. A maior dor, sem dúvida, foi minha mãe ter falecido sem ter me visto em recuperação. Em meu trabalho, mesmo com tanta turbulência, por várias vezes cheguei lá, trabalhei com os principais nomes da MPB, apesar do meu total descontrole emocional. Mas, infelizmente, troquei minha carreira profissional de sucesso pelo flagelo de uma carreira de cocaína. Tenho de cuidar da culpa, me perdoar... Essas coisas são fáceis de falar e muito difíceis de fazer. Dói e dói muito. E poucos são os bálsamos que aliviam essa dor. Alguns anos se passaram desde que eu comecei a escrever esse livro, senti na pele todas as dores de olhar “limpa” para o que havia sobrado da minha vida. Aquele brilho, aquela alegria que eu nunca mais vi nos olhos de minha mãe, nunca mais terei nos meus. E a saudade, as dores, as fissuras, as ausências, a solidão. Não tive família, não criei uma, as angústias. Essa angústia não-identificada vem, na verdade, da total inabilidade de lidar com a vida. Cobro-me muito, constantemente, a cada música que ouço no rádio, a cada programa de televisão ou filme no qual reconheço artistas, músicos, diretores, produtores, ou quando entro numa loja de CDs e vejo pessoas com quem trabalhei diretamente, sinto uma dor no coração. Passei e passo por muitas dificuldades, mas elas estão sendo atenuadas. Pouco a pouco fui procurando as pessoas que fizeram parte das tentativas de recuperação por que passei e que, de alguma forma, ainda me valem até hoje. Novas pessoas foram sendo agregadas e formando essa rede moral que me sustenta a alma e os meus dias. E vai expandindo, elas caem do céu, sem mais nem menos. De repente, sou apresentada a alguém que conhece alguém que trabalha com 353 bell.pmd 353 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES alguém que tem um dependente químico na família, ou trabalha com recuperação de dependentes químicos, ou é voluntário em alguma ONG. Assim, do nada, sempre surge um vínculo que vem somar na minha vida. São pessoas especiais, queridas, muito amadas. Há dias venho pensando em como agradecer-lhes, como citá-los, como relacioná-los. Não me sinto em paz se não falar deles. Parece aquela música do Chico, ou o poema do Drummond: “Carlos que amava Dora, que amava Pedro, que amava...”. É uma coisa sem fim, não termina nunca, ainda bem. Mas é tão extenso, são tantas pessoas, tantos nomes, que, com certeza, deixarei de citar alguém e aí vou me sentir pior. A importância de todos é imensa e seria injusto destacar alguém. E estou aqui firme, como muitos outros companheiros que conheci nessa jornada, que também, com sua luta para não voltar a usar, fortalecem meu propósito. Aquela perdedora hoje é uma vencedora. A rede do Bem Adail Lessa (in memoriam) e Eunice, Alessandra e Rodrigo, Adail e Sheila, Adriane Sabatine, Aglair e Oswaldo, Airô, Alcides , Alcioli, Alfredo, Alexandres todos, Ana a irmã, Ana Di Marzzio e família, Ana e Magdalena, Ana Maria de Bonis, Ana Paula e Luiz Fernando Emediato, André Almada, André Magalhães, Andréa Souto, Antonia Aleixo, Arthur Laranjeira, Ary, Assan Ale, Associação Novolhar, Beth Andrade, Branca Paulo de Freitas, Brascol, Brito, Christiane Torloni, Carla Rivetti, Gabriella, Catharina e Deo, Carlos Meceni, Célia Mastrandréa, Célia Pecci, Cezar da Baixada, Claudia Galvão, Claudinho Pereira e Preta, Cláudio Lopes, Cleide gorda (in memoriam), Cristina e Gel, Denis, Denise Garcia, Drogaria Sinete, Edison Coelho e Odete, Edna Macedo, Edna Stutz, Ediney, Edith, Eli e Marcão, Eloah, Elisa Band e Cassio Santiago, Elza e César, Esmeralda Ortiz, Ester Giraldi Dias, Eva Strauss, Fernanda Emediato, Flora e Gilberto Gil, Francisco Buarque de Hollanda, Fred Rossi, 354 bell.pmd 354 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Fabiana, Gustavo e Maria, Flavius, Graziela e Daniel, Guilherme, Grace e Samba de Rainha, Genildo, Guimarães, Gustavo Schoenfeld , Humbero Ascêncio, todos do IPQ do HC, Iara Melhado, Irene, irmãs Godinho, Instituto Rukha, Ivaldo, Ivan, Ivone Kassú, Izaias da Revim, Jacilda, João, João Marcos Korte e família, João Tadeu e família, José Éboli, Jo, Juarez e Junior, Juliana Galindo, Laís e José, Lena e William, Lourdes e Zé, Livia e Kleber, Loyde, Lô Cobra, Lúcia a irmã, Luciana Carvalho, Luciana Maciel, Luciano Bernini, Luciane Sabbag, Luis Antonio de Arruda Campos, Luiz Agapito e Priscila, Luiz Fernando Maglioca, Luzia, Madrinha Cacilda (in memoriam), Marcão, Marcos de Moraes, Marcos Lázaro( in memoriam), Márcia Farias, Maria Carmem Frederico (in memoriam), Márcia Laise, Márcia Moraes, Maria do Carmo, Maricélia e Kátia, Marli, Marina Dantas, Marília Gabriela, Marília Medalha, Meire Naumovs, Marisa Lahoz, Marcinho, Mario Batista, Marquinhos Di Cunto, Massao Ono, Microlins, Mitsue, Monica e Ricardo, Nádia Hidalgo, Nega e Odete, Netinho de Paula, Nica Band, Oscar e Leonel, Orthodent, (in memoriam) Padrinho Ortêncio, Otávio, Palena Duran, Pati e Karla, Paula, Paulo Gonçalo, Paulo Lima, Paulo Santiago, Pedro, Rachel Lino, Rafael, Raquel de Santos, Regina a mãe, Regina Fevereiro, Reinaldo Di Cunto, Revista Trip, Rick San e Márcia Mozão, Rita T.O., Roberto Carlos Braga e Carminha, Roberto Baiano, Roberto Rios, Robson, Rochinha, Rosa Beloto, Ruy, Rosane Svartman, Rosi e Vera, Samuel e Silvia, Sandra Zimmermann, Sérgio Dávila, Sidarta, Sidney Eduardo Kalaes e Denize, Seu Vicente, Silvana e Mônica Tomasi, Silvio e Cati, Simone Bittencourt de Oliveira, Soninha Francine e Marcelinho, Sueli Ap. Timóteo, Suely, Suzana Madrinhão, Suzana Reipert Leopoldo e Silva, Tatianas todas, Teresa e José Roberto Povia, Terezinha, Thiago Vasquez, Tom Arruda, Torres, Valente (in memoriam), Vera Lúcia, Vivians todas, Vivianny, Vinicius França, Vitor Martins, Wello, William Sanches, Zeli, Zélia Cristina Duncan e, com certeza, nunca irá terminar... E é aí que “A Rede do Bem” se manifesta. 355 bell.pmd 355 8/2/2006, 08:26 Carta aberta à minha mãe Mãe, não sei onde a senhora está e nem sei se me ouve, mas com certeza sei que o seu lugar no Paraíso a senhora conquistou muito antes de falecer. Por tudo o que passou, sendo minha mãe, já lhe valeu muitos pontos na contagem de Deus. Mãe, escrevendo este livro fui me lembrando de muitas coisas, como, por exemplo, daquela foto bonita do meu avô com a toga de formando que a senhora guardava com tanto carinho, e eu, muito louca, rasguei só por maldade. Mãe, lembra dos escritos dele usando a caneta de pena naquela caderneta de capa vermelha que, por anos, a senhora trouxe intacta pelo valor não só afetivo, como literário também? Afinal, ninguém é homenageado com o seu nome se não o merecesse. E ele está com o nome eternizado numa placa de rua no bairro do Cambuci. E eu rasguei também. Mãe, a senhora se lembra das anotações, de outras fotografias que a senhora tinha, até aquela, mãe, de quando a senhora trabalhou no Teatro do SESI, dirigida pelo Oswaldo Cruz na peça “Cala Boca, Etelvina”? Lembra, mãe, eram várias fotos, e eu, nessa madrugada, a título de não sei o quê — além da pura vontade de agredir e muita raiva porque não tinha mais cocaína para usar — acabei com suas lembranças materiais? 356 bell.pmd 356 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas Mãe, tem outra coisa. A senhora deve se lembrar muito bem da forma como eu me dirigia à senhora, aos berros. Sempre gritei, e muito. Pessoas que ouviam, depois vinham me aconselhar para não agir assim. Quando essas coisas aconteciam, depois eu pedia muitas desculpas, mesmo quando não tínhamos telefone. Lembro-me de ter lhe enviado alguns telegramas, pois não agüentava esperar até a noite para me desculpar, tamanho era o mal-estar que ficava. Eu pedia desculpas, mas não mudava o meu comportamento. E quantas vezes, mãe, a senhora não viu nem o holerite do seu pagamento, que dirá o dinheiro. Quando o banco, à meia noite, virava o dia bancário, muitas vezes eu já estava lá na porta esperando para sacar a sua aposentadoria. A senhora não tinha mais nem o direito de sequer saber quanto ganhava e, ainda por cima, ficava sem poder cortar o seu cabelo, fazer suas unhas... Quando a senhora faleceu, seu cabelo estava todo desbotado, num comprimento que a senhora nunca tinha usado, sem pintar e suas unhas sem serem feitas. Isso sem falar em vida, quando elas ficavam grandes e a senhora não conseguia, por causa de sua precária saúde, cortar sozinha. Pedia-me para que eu cortasse, mas eu, na maioria das vezes, negava. Quantas e quantas vezes deixei a senhora sem os seus principais remédios, que lhe garantiam o seu bem-estar. Nem a levava ao hospital para consultas importantes e acompanhamentos, como no cardiologista, endocrinologista, ortopedista... A consulta, os retornos e a medicação tomada corretamente, com certeza, teriam evitado a forma trágica como foi o seu falecimento. Isso sem falar nos aborrecimentos que passou e nas centenas de vezes em que viu eu me drogando, o que complicava mais ainda a sua saúde. Quantas vezes, mãe, com o dinheiro de uma dose de cocaína a senhora poderia fazer uma farta feira, porque hoje eu faço, às vezes, até com menos. Mas não, eu lhe deixava passando fome, literalmente, e ia me drogar. Como hoje eu posso, mãe, olhar para uma empadinha que a senhora tanto gostava e me lembrar que nem isso mais eu a deixava 357 bell.pmd 357 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES comer. Nem no dia do seu pagamento, como a senhora fez comigo durante anos da minha infância e pré-adolescência, quando nesse dia íamos tomar um lanche bem gostoso na Lancheteria Paulista, um lugar chique daquela época. Mãe, como posso viver em paz lembrando-me que enquanto eu tive idade para isso a senhora me deu a boneca do ano, a mais famosa no Natal. Sabe-se lá em que condições, com que esforço a senhora conseguiu comprar. Mãe, como posso ter paz para viver quando me lembro que seu aniversário era 29 de abril e o Dia das Mães, no segundo domingo de maio. E eu passei anos não lhe dando nem uma lembrança no seu aniversário, dizendo que daria dobrado no Dia das Mães. Só que quando chegava o Dia das Mães o que a senhora tinha, na maioria das vezes, era uma filha muito louca de tanto se drogar, dando uma desculpa mais esfarrapada que a anterior. Mãe, e o seu amor por mim, que nunca foi abalado, acontecesse o que acontecesse, fizesse eu a barbaridade que fosse. E foram dezenas. O seu amor era inquebrantável. Todas as suas amigas me contam como a senhora falava desse amor e eu, muitas vezes, gritei dizendo que ele me sufocava. Mãe, e aquela vez no Rio de Janeiro, quando eu já tinha perdido tudo e a senhora, vindo da missa, acidentou-se. Durante o almoço, que estávamos comendo graças à sua amiga Magdalena, somente depois de muito tempo eu notei algo estranho e foi aí, insistindo, que vi sua mão completamente inchada. E a senhora me escondendo por medo da minha reação. Detalhe: a senhora tinha fraturado vários dedos em diversos lugares. Qual não deve ter sido a sua dor e a senhora ali, quieta para não me aborrecer. Mãe, quantas vezes essa cena se repetiu. Muitos anos depois, em São Paulo, quando eu queria ficar sozinha no flat Parador e a obrigava a sair, ir à igreja. Ainda lhe dizia: “Olhe lá embaixo, quantas senhoras idosas andando sozinhas. Por que a senhora não me deixa em paz?” A senhora saía e, muitas vezes, quando voltava, ficava com as mãos na boca escondendo algo. E depois, quando eu via, a senhora estava com os lábios roxos por causa 358 bell.pmd 358 8/2/2006, 08:26 Estou viva, não uso mais drogas de uma queda. Mãe, isso aconteceu tantas vezes. E muito por causa daquele único sapato que a senhora tinha, com solado alto de borracha que atrapalhava mais ainda o seu já fraco andar. Mãe, a senhora tinha medo de mim. Hoje, mãe, dia 6 de fevereiro de 2006, a coisa mais triste para mim é estar sem me drogar há seis anos, dois meses e dezoito dias e não ter a senhora aqui a meu lado para viver a paz que a minha abstinência trouxe. Hoje, mãe, tento todos os dias não desistir por causa desse sentimento inútil de culpa em relação às coisas que fiz a senhora passar. Não consegui me perdoar e nem sei se conseguirei. A dor de saber que o que eu fiz é irreversível, e que a senhora não está mais aqui, pesa demais. Como posso viver na paz de uma casinha onde reina harmonia e, às vezes, algum fato ou alguma coisa me remete àquele tempo e me lembro do verdadeiro suplício que impingia à senhora? Como nas vezes em que fugia às seis horas da manhã para não encontrar o Dr. Omar cobrando o aluguel e deixava o constrangimento para a senhora passar. E, detalhe: com a sua aposentadoria daria para pagar aquele aluguel, mas a senhora não via mais a cor do seu dinheiro havia muito tempo. Hoje, mãe, é ainda muito difícil eu me perdoar. É esquisito. Fui eu que a fiz sofrer e sou eu quem hoje choro. Não mais aquelas lágrimas de álcool. Hoje meus sentimentos, apesar de embaralhados, são reais e dói, mãe, dói muito não ter a senhora aqui comigo. A dor da saudade é tão grande, que chega a doer fisicamente. Canso de ouvir que a senhora, onde estiver, está feliz e, finalmente, em paz, mas eu queria que a senhora estivesse aqui para que pudesse, de alguma forma, me redimir das coisas que lhe fiz passar. Sei que estou sendo muito egoísta mais uma vez, mas hoje, mãe, em vez daquela cama forrada com panos, a senhora teria um colchão adequado. Hoje, mãe, a senhora teria o seu livro que a senhora já tinha terminado, editado, pois a senhora caminhava para isso sozinha e independentemente das intempéries da nossa vida. 359 bell.pmd 359 8/2/2006, 08:26 BELL MARCONDES Hoje, mãe, a senhora poderia dormir em paz, vivendo com sua filha em total abstinência, de cabeça erguida, em busca de sanar todos os males que fiz no decorrer da minha vida, sem usar drogas ou transformar nossas vidas em uma droga. Hoje, mãe, aquela foto do meu avô que eu rasguei, eu mandaria ampliar para melhor manter a memória dele e, principalmente, para fazer um agrado à senhora. Hoje, mãe, a minha maior alegria seria vê-la sorrindo, em paz, e poder abraçá-la. Aquele abraço de quebrar as costelas, como a senhora dizia brincando. E o preço maior que hoje pago é a certeza de que jamais poderei realizar este sonho. Mãe, eu te amo, descanse em paz. Arquivo pessoal Dona Eunyce 360 bell.pmd 360 8/2/2006, 08:26