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capital humano
02/03/2006
Coração feminino

 

Coração de mulher engana. Pelo menos é o que apontam estudos sobre a incidência de isquemia (insuficiência localizada de irrigação sangüínea) e de doenças cardiovasculares na população feminina norte-americana. No país em que as doenças cardíacas são a principal causa de morte de mulheres, conclusões recentes revelam que o diagnóstico desse tipo de problema pode ser mais difícil em pacientes do sexo feminino. Dissimuladas, as artérias delas podem não revelar nenhuma obstrução aparente enquanto a paciente está à beira de um infarto. A conclusão faz parte do estudo Wise (Women's Ischemic Syndrome Evaluation), conduzido desde 1996 pelo National Heart, Lung and Blood Institute, nos EUA. Em artigo publicado no mês passado pelo "Journal of the American College of Cardiology", o Wise alerta para o fato de que cerca de 3 milhões de norte-americanas portadoras de doenças coronárias podem apresentar artérias "limpas" -livres de obstruções-, quando, na verdade, placas de colesterol se espalharam ao longo da parede arterial em vez de se acumular formando uma obstrução evidente, como geralmente ocorre nos homens.

A sutileza das doenças cardiovasculares femininas está quebrando a cabeça dos cientistas norte-americanos, que começam a defender abordagens diferenciadas para homens e mulheres no que diz respeito a esses quadros.

"A avaliação da isquemia em mulheres representa um único e difícil desafio para os clínicos devido aos sintomas manifestados, às altas taxas de incapacitação funcional das pacientes e à baixa incidência de obstrução arterial se comparada à dos homens", explicam os pesquisadores do Wise, liderados por Carl J.Pepine, da divisão de medicina cardiovascular da Universidade da Flórida.

MITO
Some-se ao desafio o fato de que, ao longo das últimas décadas, foi criado em todo o mundo o mito de que os problemas do coração são característicos de homens e que as mulheres não precisam se preocupar com eles. Isso até fazia sentido no tempo em que elas levavam vidas predominantemente domésticas e podiam se dedicar com exclusividade à família. "Há 30 anos, quando uma mulher enfartava, todos os cardiologistas corriam para ver. Era um extraterrestre, uma coisa fora do normal, um caso raríssimo", lembra Carlos Alberto Pastore, diretor do Instituto de Cardiologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

De lá para cá, muita coisa mudou. As mulheres se emanciparam, entraram no mercado de trabalho, conquistaram posições de destaque. Passaram a ser as principais responsáveis por muitas famílias. Acumularam as cobranças de profissional competente, mãe responsável, dona-de-casa eficiente e mulher atenciosa. Apressadas, não têm tempo para praticar uma atividade física nem para se alimentar adequadamente. Mais livres, saem à noite, bebem e fumam. Haja coração.

"As mulheres estão se equiparando aos homens em tudo, inclusive nas doenças", diz Pastore. Segundo dados da American Heart Association, há dez anos aconteciam nove infartos em homens para cada caso feminino nos Estados Unidos. Hoje, são seis casos masculinos para cada quatro mulheres com doença coronariana. Em 2002, as doenças coronarianas causaram a morte de 241.622 mulheres nos EUA, enquanto o câncer de mama respondeu por 41.514 óbitos. Mesmo assim, é o câncer de mama que mais as preocupa.

De acordo com dados da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), na cidade de São Paulo, a relação de mortalidade por doença arterial coronária entre homens e mulheres era de dez homens para cada mulher em 1970. Em 2002, a proporção já era de 2,45 casos masculinos para cada feminino.

MAUS HÁBITOS
Enquanto o cigarro continua a figurar como um dos grandes vilões das doenças cardiovasculares, dados da pesquisa Corações do Brasil, da SBC, apontaram um salto na proporção de mulheres fumantes no país. Ela passou de 10% para 20,5% da população na última década. Inversamente, a fatia de homens tabagistas caiu de 38% para 28%.

Além do tabagismo, o diabetes, a pressão sangüínea, a idade, o sobrepeso e a obesidade, o sedentarismo e as taxas elevadas de colesterol e triglicérides figuram como os fatores de risco para o desenvolvimento de uma doença cardiovascular, além da hereditariedade. E o ritmo acelerado de vida serve de mola para os estragos na saúde.

"A mulher de hoje anda sem tempo para se cuidar, para se curar e para fazer a manutenção do seu corpo. O estresse interno multiplica o estresse externo, e ela vira um barril de pólvora com o pavio cada vez mais curto", comenta Marcos Sleiman Molina, cardiologista e doutorando em cardiologia pela USP.

"As mais novas fumam mais, os lares e casamentos desfeitos despejam sobre as mais velhas a carga integral da família. Muitas vivem com sinais de depressão incipiente, com o humor prejudicado, sem conseguir ver beleza nas coisas, fadigadas. A doença cardiovascular é a conseqüência matemática disso tudo", completa Molina.

FARDO
Adriana Prado, 35, cuida de toda a parte de marketing de um portal de beleza e de um programa de televisão. Tem quatro filhos e toma conta dos três mais novos sozinha. Levanta às 5h30 diariamente para fazer o café da manhã e deixar as crianças na escola. Depois, encara o trabalho corrido de criar e executar projetos. "É muita pressão", desabafa. Estressada e deprimida, ela conta que engordou 30 kg em um ano e meio. Um dia, há dois meses, entrou numa clínica de estética para fazer um peeling. "Estava me achando horrorosa e sentindo uma dor na boca do estômago. Uma médica tirou minha pressão, viu que estava muito alta e chamou o socorro. Foi o que me salvou, eu estava enfartando", conta. Antes do susto, ela nunca tinha pensado que pudesse ter algum problema de coração. "Na hora do desespero, eu só pensava nos meus filhos. Depois que passou, comecei a me perguntar por que nunca adotei uma postura preventiva, por que deixei as coisas irem até aquele ponto. Mas, sinceramente, até isso acontecer, ir a um cardiologista foi algo que nunca passou pela minha cabeça", confessa.

Como Adriana, muitas mulheres tendem a se achar "imunes" às doenças cardiovasculares. "O risco tem sido subdimensionado porque a sintomatologia é mais freqüente entre os homens", avalia o cardiologista Jacob Szejnfeld, diretor dos laboratórios Cura, em São Paulo, e professor de diagnóstico por imagem da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Szejnfeld orientou uma tese de doutorado escrita pela também cardiologista Eliane Fiuza Pinto, em que foi traçada uma correlação entre a ocorrência de calcificações vasculares exibidas na mamografia e a incidência de doenças cardiovasculares.

"Toda mulher faz mamografia, mas o ginecologista geralmente ignora essas calcificações porque não representam perigo de tumor. Se o ginecologista atentar para o fato de que aquele pode ser um indício de doença cardiovascular e encaminhá-la a um cardiologista, isso pode ser valioso", comenta.

DIAGNÓSTICO DEMORADO
A publicitária Renata Rode, 29, penou durante um ano e meio para descobrir que sofria de síncope neurocardiovascular -tinha desmaios repentinos que a impediam de dirigir. "Minha família vivia preocupada comigo, achando que a todo momento eu poderia estar caída em qualquer lugar", conta. Os exames de coração não apontavam nada, e os médicos tendiam a apostar em um problema neurológico. Foi a 12ª cardiologista que procurou quem conseguiu diagnosticar o problema corretamente. "Descobrir que era o coração e ter a chance de me cuidar foi um alívio", afirma Renata, que está sob medicação e vive sem desmaiar há um ano e três meses.

"É preciso desfazer essa idéia de que a mulher não tem problema cardiovascular. Hoje, o volume de pacientes que chegam aos cardiologistas ainda é predominantemente masculino. Muitas vêm achando que não têm nada e, quando investigam, descobrem alguma coisa. É preciso disseminar também entre as mulheres a cultura preventiva em relação aos problemas de coração que, de certa forma, já existe entre os homens", enfatiza Flávio Cure, cardiologista e doutor em cardiologia pela USP.

Foi justamente inspirada na preocupação dos homens com quem trabalhava que a executiva Betina Moreira, 37, resolveu fazer seu primeiro check-up, aos 33 anos. O procedimento é repetido anualmente. "Por conta da minha carreira, adotei um ritmo de vida alucinante e mergulhei em um universo tipicamente masculino. A maioria dos meus almoços passaram a ser de negócios, estava sob constante pressão por resultados, acordava no meio da noite pensando no projeto que tinha que entregar", relata.

"Foi quando notei que os homens que trabalhavam comigo tinham uma infra-estrutura doméstica que eu não tinha. Percebi que estava em desvantagem, que não tinha tempo para fazer atividade física nem para comer direito. Decidi me cuidar", conta. Os exames trouxeram tranqüilidade em relação à saúde, e Betina passou a ser mais cuidadosa com a alimentação e com a qualidade de vida. "Mudei de empresa e hoje trabalho menos horas. O mais legal é perceber que nunca é tarde para começar a se cuidar. Na ansiedade de se colocar no mercado, a mulher se lança numa luta pesada. Mas as armas [de homens e mulheres] não são iguais. Para a mulher, o check-up traz o conforto de ela se sentir cuidada. É muito válido", ensina.

DIABETES E MENOPAUSA
A cardiologista e médica nuclear Paola Smanio, 40, alerta para a necessidade de atenção redobrada no caso de mulheres diabéticas. Em sua tese de doutorado, defendida na Unifesp, Smanio acompanhou 104 diabéticas que não apresentavam nenhum sintoma de distúrbio cardíaco.

"Elas foram submetidas a uma série de exames. Sem que nunca tivessem sentido uma única dor no peito, 32,5% já tinham as artérias obstruídas."

A chegada da menopausa também deve desencadear estado de alerta. Com a queda no nível do hormônio estrógeno no organismo, perde-se grande parte da proteção natural feminina às doenças cardiovasculares. A regra também vale para as que, mesmo jovens, sofrem de distúrbios metabólicos ou têm deficiência dessa substância.

As cardiopatias femininas serão abordadas no livro "Risco Cardiovascular da Mulher", a ser lançado em breve pelo cardiologista e professor da Faculdade de Ciências Médicas de Santos, Hermes Xavier. Destinada aos médicos, a publicação vai reforçar a necessidade de orientar as mulheres sobre a importância dos cuidados com o coração.

"Menos da metade das mulheres relata que foi orientada por médicos sobre o risco de doenças cardiovasculares. Em verdade e historicamente, subestima-se a real importância do risco cardiovascular na população feminina quando se compara ao valor atribuído à população masculina. Essa situação precisa mudar urgentemente", conclui.

TATIANA DINIZ
da Folha de S.Paulo

   

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