No bairro
em que mora em Salvador --um local tomado pela pobreza e cada
vez mais contaminado pelo tráfico de drogas--, Gilvã
Mendes só é chamado de "aleijado".
Não chegam nem perto de uso de expressões descarregadas
de preconceito como portador de deficiência ou pessoa
com deficiência. A violência semântica é
apenas um ínfimo detalhe na galeria de violências
enfrentadas por Gilvã.
Ele é síntese de quase todas as marginalidades.
Negro, nordestino, pobre, cadeirante, vítima de paralisia
cerebral --seus movimentos do corpo e da fala foram afetados,
mas não sua inteligência. Por muito tempo, não
foi aceito na escola; aos 17 anos, estava na quinta série
de uma escola pública.
Trancado em casa, sem ter para onde ir, agarrou-se aos livros
e, em especial, ao prazer de escrever poesias. Passou esses
últimos seis anos de sua vida com o projeto de contar
o que significa querer ser escritor e enfrentar todas as marginalidades
--entre as quais ser um cadeirante em uma cidade cheia de
ladeiras ou não ser aceito por uma escola. Ou não
poder mover direito os dedos e ter difícil acesso a
um computador.
Não me lembro de ter lido nada tão tocante
de um estudante sobre o prazer da escrita e da leitura. Esse
é um daqueles raríssimos casos de talentos que
se salvam, apesar das dificuldades. É apenas mais uma
prova de que a perda diária de talentos é o
nosso maior e mais caro desperdício.
Não é fácil nutrir talentos. Veja alguns
dos mais famosos conterrâneos de Gilvã, como
Caetano, Gil, Nizan Guanaes, João Ubaldo, Maria Bethânia.
Se tivessem nascido em famílias muito pobres, não
teriam ido longe. Aliás, todos tiveram que viver em
cidades como Rio e São Paulo para desenvolver suas
potencialidades.
O que vale para Salvador vale para o Brasil: a falta de possibilidades
educacionais nos faz uma nação aleijada. Por
isso, o relato de Gilvã entra na galeria de relatos
de nossos sobreviventes de guerra.
PS: Coloquei neste link alguns trechos no livro "Queria
Brincar de Mudar Meu Destino", ainda inédito.
Coluna originalmente publicada na
Folha Online, editoria Pensata.
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