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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
01/05/2006
Você ainda acha que a corrupção é o maior desperdício?

Os brasileiros se incomodam muito mais com a corrupção do que com o desperdício de recursos públicos aplicados em gastos absolutamente dentro da lei -isso só se explica pelo pouco conhecimento dos cidadãos sobre as despesas oficiais. Para medir o custo do desperdício, bastaria comparar não mais que duas informações:

1) Os 3 milhões de funcionários públicos federais aposentados recebem anualmente R$ 76 bilhões; 2) Com R$ 5,5 bilhões, o Bolsa-Família transferiu, no ano passado, recursos a 8,7 milhões de famílias, o que atinge cerca de 32 milhões de pessoas.

Ou seja, os tais 8,7 milhões de famílias recebem 7,4% do valor destinado aos 3 milhões de aposentados federais. Não é apenas o volume do dinheiro que conta, mas seu retorno: essa é a conta mais importante do desperdício.

Estudos recentes têm demonstrado que os programas de transferência de renda, como o Bolsa-Família, nascidos na gestão Fernando Henrique Cardoso e aprimorados no governo Lula vêm exercendo um papel relevante no combate à miséria. Há uma série de divergências quanto aos impactos desses programas, mas é quase unanimidade o fato de que, em alguma medida, atuam, além da redução da pobreza, na melhor distribuição da renda.

Na semana passada, reportagem da Folha apontou, com base em estatísticas oficiais, mais um efeito dessas transferências: a volta de migrantes para suas cidades de origem, já que não estariam encontrando emprego e, lá, teriam algum tipo de ajuda mínima. Há suspeitas de que, com isso, muita gente esteja pensando duas vezes antes de sair do Nordeste para outras regiões mais ricas, saturadas e sem empregos. Atribui-se essa mudança de hábito, entre outros fatores, à parte da redução da desnutrição na região do semi-árido devido às bolsas -o dinheiro vai direto para a comida.

São essas as contas que vamos ter de aprender a fazer nessas eleições. Isso porque, como de costume, os candidatos vão prometer mundos e fundos, sem dizer de onde virá o dinheiro. Já estamos pagando 37% de tudo o que o país produz (PIB) para manter os governos. Isso até pode não assustar à primeira vista, mas a tradução é devastadora: R$ 755 bilhões. Uma imensa parcela desse dinheiro vai para bancar os aposentados, funcionários públicos e juros. Ou seja, gastos sem retorno para o crescimento econômico.

O Bolsa-Família também, nesse aspecto, pode ser questionado. Há cerca de 150 programas (alfabetização, por exemplo) que, em tese, ajudariam o indivíduo a viver sem ajuda oficial, mas são descoordenados e desfocados. Tal desorganização dificulta que o beneficiário da ajuda em dinheiro ganhe autonomia e corra o risco de sempre depender de uma esmola oficial.

Diga-se a favor dessas transferências que o dinheiro está chegando às mãos de quem mais precisa. Nunca, em toda a nossa história, tanto dinheiro chegou diretamente às mãos dos mais pobres.

Há uma chance de que, nesta eleição, pelo menos parte do eleitorado preste atenção nesse tipo de cálculo mais complexo -o que revelará amadurecimento político. Mais e mais pessoas vêem como o Estado inchado, extraindo muitos impostos e sustentando altas taxas de juros, dificulta o crescimento econômico e a geração de empregos. Mas as conseqüências desse diagnóstico não são agradáveis. Exigem-se, afinal, cortes e melhor direcionamento das verbas.

Sabe-se que um país não consegue crescer sem melhorar a educação. Gasta-se cerca de três vezes com aposentadorias -públicas e privadas- o que se investe em educação, cujos resultados são catastróficos. Isso significa que, num debate sério, sem demagogia, teremos de nos confrontar com a inexorável questão sobre se não é prejudicial para um projeto de desenvolvimento aumentar ainda mais os gastos com os aposentados a cada aumento do salário mínimo. O último deles custou R$ 4 bilhões, valor não muito distante do que se despendeu com todo o Bolsa-Família.

Vamos a mais uma comparação. Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um novo texto para a criação de um fundo (Fundeb) para ajuda ao ensino. Se for aprovado pelo Congresso, cerca de 50 milhões de alunos da rede pública vão receber mais R$ 4,5 bilhões de verbas federais.

Provavelmente, nenhum candidato conseguirá agradar aos eleitores com esse tipo de conta -aliás, esse discurso não agrada a quase ninguém. É mais fácil entender fraseados do tipo mais gastos para o social para atacar a miséria, vontade política, egoísmo das elites e por aí vai.

O debate consistente não está no aumento de gastos nem em soluções mágicas como calote da dívida pública ou suspensão de pagamento de juros, mas na remodelação dos programas e melhor foco das despesas. Fácil falar, mas na prática requer o enfrentamento com os mais diversos grupos de pressão, muitos deles que querem apenas manter privilégios e têm força política. Essa mudança só vai ocorrer se soubermos fazer as contas e perceber que o custo do desperdício é várias vezes maior do que a roubalheira.

P.S. - Faça mais uma comparação com os R$ 5,5 bilhões do Bolsa-Família. No primeiro trimestre deste ano, segundo foi divulgado na semana passada, os gastos do governo federal com pessoal e despesas da máquina aumentaram em R$ 6,9 bilhões. Estamos falando aqui só em três meses -e, aqui, pelo menos parte desse dinheiro, se tiver retorno, irá para a candidatura de Lula à reeleição.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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