HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

urbanidade
02/06/2004
Um som estrangeiro em Sampa

Quando está na fazenda e quer esquecer as preocupações, Mônica Falcone dirige sozinha um jipe pelas estradas de terra ouvindo música em alto volume. A combinação de paisagem bucólica, vento, cheiro de mato, som e velocidade consegue deixá-la relaxada. Pela primeira vez, na quinta passada, resolveu testar essa terapia automobilística pelas ruas congestionadas de São Paulo. Foi a última vez.

Como a paisagem jamais seria remotamente parecida com a do campo e não estava disposta a ficar de janela aberta, sobrou-lhe então pilotar o jipe Hilux, da Toyota, utilizado apenas para viajar até a fazenda. Colocou para tocar musicas românticas cantadas por Caetano Veloso.

Entretida com as melodias, não notou dois jovens, no semáforo, apontando-lhe um revólver calibre 38 e exigindo que abrisse o vidro. Desde que voltara da Itália, onde morou por 20 anos e decidiu trocar o jornalismo pela culinária, Mônica sentia-se razoavelmente protegida. "Depois de tanto tempo morando no exterior, fui me sentir mesmo estrangeira em minha própria terra."

A cena teve um toque de realismo mágico, tudo acompanhado pela suavidade musical de Caetano. Os dois só a tratavam, gentilmente, por senhora. "A senhora não se preocupe, nunca mataria ninguém. Meu pai morreu assassinado, sei como isso estraga uma família", disse um, incomodado com os prantos. Ela, maternal, disse que tinha um filho da idade deles e recomendou: "Nunca mate ninguém, mais cedo ou mais tarde pegam você".

Os jovens não conheciam as ruas e Mônica estava nervosa. A caminho da marginal Pinheiros, erraram o caminho. "A senhora tem o seguro do carro?", o rapaz que pilotava quis saber. "Sei lá, por quê?" Não queriam levar dinheiro nem cartões, só o carro. Ele disse que ficaria mais tranqüilo se o jipe estivesse no seguro. O carro, avisou, seria desmanchado ou mudaria de país. Nunca mais seria recuperado. De tão visado, esse tipo de jipe não é aceito por algumas seguradoras.

Mônica foi deixada numa esquina, nas proximidades de Pinheiros. Quando saía, aliviada, do carro, ouviu a última pergunta do rapaz ao volante: "Quem está cantando é o Caetano?". Diante da resposta positiva, ele sorriu e cumprimentou: "A senhora tem muito bom gosto".

Desorientada, amedrontada e sozinha em uma esquina, sem o celular, Mônica viu o jipe se distanciar, com os jovens ouvindo Caetano interpretar músicas americanas no mais recente trabalho, "A Foreign Sound" (um som estrangeiro).



Esta coluna é publicada originalmente na Folha S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
01/06/2004 Os professores precisam ser salvos
30/05/2004
Professor sabe-nada
28/05/2004
A escola de invenções de Ziraldo
24/05/2004
São Paulo não é um quintal do Brasil
23/05/2004
Marta é vítima do machismo ou da futilidade?
19/05/2004
A menina do largo do Arouche
17/05/2004
Como escolher um prefeito
16/05/2004
Quem quer "ficar" com São Paulo?
13/05/2004
A saída é Lula pedir desculpas
12/05/2004 ONG chique