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O aluno
é o responsável pelo baixo aprendizado. A culpa,
portanto, seria da vítima - e, pior, ela concorda com
isso
Ana Lúcia Teixeira tinha sete anos, e Marcos Costa, 11, quando
se conheceram na Escola Municipal Maria Antonieta D'Alkimin,
nos tempos em que a classe média ainda reverenciava
o ensino público. Nunca mais se separaram. Casaram-se.
Quando tiveram filhos, a educação pública
não tinha nem remotamente o prestígio do passado.
Resolveram, porém, matriculá-los naquele mesmo
colégio em que se apaixonaram. Esse triângulo
amoroso, formado por um casal e uma escola, revelou, neste
mês, um inesperado resultado, desses que servem de lição
para o país.
Apesar de atender alunos de várias favelas, a Maria
Antonieta D'Alkimin obteve, em São Paulo, o primeiro
lugar na lista elaborada pelo Ministério da Educação.
"É mesmo um caso de amor", resume Ana Lúcia.
Um dos filhos do casal, Daniel, comandou o grêmio da
escola. Esse triângulo tem especial significado diante
da pesquisa da Unesco divulgada na semana passada: professores,
pais, diretores, coordenadores e os próprios estudantes
apontam o aluno como principal responsável pelo baixo
aprendizado.
A culpa, portanto, seria da vítima -e, pior, a própria
vítima concorda com isso.
Ana Lúcia e Marcos fazem parte de uma mobilização
para melhorar o ensino público. Mesmo sem estudarem
pedagogia, participam no desenho de um molde, ignorado até
por especialistas, da escola pública ideal.
A mobilização dos pais, cobrando dos professores
e do diretor mais empenho, por si só, já exerceria
efeito, como demonstram estudos em todo o mundo. Ana Lúcia,
entretanto, mesmo ficando com o primeiro lugar, não
está satisfeita: "Podemos ir muito mais longe,
mesmo sem ter mais dinheiro, desde que aumente, cada vez mais,
o empenho da direção". Ela pede, por exemplo,
que a escola fique aberta nos fins de semana e menos faltas
de professores.
Olhando o que acontece ali, vemos um arranjo educativo local
- e aí se comprova, pela enésima vez, o valor
do entrosamento comunitário.
Uma boa parte dos alunos da Maria Antonieta D'Alkimin, localizada
na Vila Olímpia, mora numa favela, de nome Coliseu.
É lá que, depois das aulas, eles tiram suas
dúvidas, além de praticarem atividades esportivas
e culturais. Estudantes que moram num abrigo público
(Santa Tereza) também são auxiliados para fazer
a lição de casa e desenvolver habilidades de
leitura e de escrita.
Um grupo de 40 alunos da escola compõe-se de filhos
dos empregados mais pobres de um shopping de luxo (a loja
Daslu), localizado, aliás, exatamente ao lado da favela
Coliseu. Como os meninos e as meninas da favela, os estudantes
recebem reforço durante todo o contraturno.
Em suma, para uma parte expressiva dos estudantes daquela
escola, justamente a mais vulnerável, existe uma jornada
ampliada - mais um ingrediente apontado nas pesquisas como
decisivo no aprendizado.
Uma universidade situada nas proximidades (a Anhembi) oferece
cursos de computação e inglês; voluntários
de um banco (o Real) patrocinam atividades de dança
contemporânea e esportes. Articularam-se os equipamentos
públicos de educação, saúde, assistência
social e cultural. O Conselho Tutelar, por exemplo, manifesta-se
quando recebe denúncias de falta de atenção
aos alunos mais vulneráveis.
Há uma ligação especial entre a escola
e o posto de saúde. É inevitável fazer
uma associação vital: quanto pior a saúde
dos estudantes (o que é mais do que comum), pior o
aprendizado. É preciso ser um ignorante total e absoluto
para não perceber essa ligação -essa
ignorância é justamente o que aponta aquele estudo
da Unesco, segundo o qual a culpa é da vítima.
Esse arranjo local é complexo porque exige mobilização
permanente e articulação entre a comunidade
e diversas áreas do poder público, mas funciona.
Basta ver a nota da escola, cujas deficiências, porém,
persistem e são apontadas pelos pais.
Tanto funciona que, na quinta-feira passada, se reuniram reservadamente,
em Brasília, representantes dos ministérios
da Ciência e Tecnologia, da Educação,
da Cultura, dos Esportes e do Desenvolvimento Social para
descobrir como unir seus programas em torno da educação
pública, estendendo-se numa rede pelos Estados e municípios.
Por depender da engenhosidade local, possivelmente, a chave
para montar esse arranjo esteja mais na paixão de Ana
Lúcia e Marcos por uma escola, sentimento transmitido
aos filhos, do que nos técnicos. O casal participou
do quase-milagre de manter a qualidade do ensino público
dos tempos em que, crianças, se apaixonaram.
PS - Na lógica do arranjo local, o Ministério
da Educação decidiu, na semana passada, conceder
uma bolsa aos estudantes universitários que se disponham
a auxiliar as escolas públicas -a bolsa seria, inicialmente,
destinada aos alunos dos cursos de licenciatura e pedagogia.
Há experiências desse tipo em andamento, tocadas
por universidades mineiras, que mostram que, se o projeto
for bem conduzido, todos sairão ganhando, a começar
dos universitários, que adquirem habilidades profissionais.
Coloquei no site exemplos de
arranjos educativos locais.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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