REFLEXÃO


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folha de s. paulo
04/02/2008

De tanto morrer se aprende a viver

Os números mostram como a epidemia da violência se espalhou pelo Brasil, escapando das metrópoles



Apontada mundialmente como uma referência de civilidade urbana, Curitiba foi alvo, na semana passada, de um pesado ataque a sua imagem. Quem imaginaria que lá se poderia correr mais risco de assassinato do que no Rio de Janeiro?

Já soaria até muito estranho comparar as duas cidades no quesito violência. Ainda mais esdrúxulo seria colocar Curitiba em desvantagem. Feito com base em informações dos ministérios da Saúde e da Justiça, o "Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros 2008", divulgado na última terça-feira, revela até mesmo uma diferença expressiva: em Curitiba, o índice de assassinatos por 100 mil habitantes foi, em 2006, de 49,3 e, no Rio, de 37,7. Surpreso? Então veja a comparação com Florianópolis, até pouco tempo atrás a capital mais segura do país, vista como um refúgio contra o caos urbano.

Florianópolis, com a taxa de 40,7, não só perde para o Rio como fica bem longe de São Paulo, que, em 2006, teve 23,7 assassinatos por 100 mil habitantes. A comparação ficaria ainda muito pior se a base fosse o ano de 2007; segundo relatório publicado na quinta-feira, a queda do índice na capital paulista em relação ano anterior foi de 22%.

Os números mostram como a epidemia da violência se espalhou pelo Brasil, escapando das metrópoles -e, ao mesmo tempo, como se vai aprendendo, aos poucos, a lidar com a violência.

Comparadas a São Paulo e ao Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis são cidades que têm populações pequenas, não sofrem com tantas favelas, oferecem educação de melhor qualidade e registram um nível de desemprego mais baixo.

O responsável pelo "Mapa da Violência", Julio Jacobo Waiselfisz, da Ritla (Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana), acredita que haja uma questão de aprendizado. "Lugares mais pacatos não se prepararam como deveriam para o aumento da violência", diz ele. A leitura de seu relatório mostra que a média nacional caiu entre os períodos de 2004 e 2006, em comparação com o biênio anterior, por causa especialmente dos resultados melhores (embora ainda preocupantes) obtidos pelas regiões metropolitanas do Rio, de Belo Horizonte e de São Paulo. Registraram-se quedas, embora modestas, até mesmo na tão temida Baixada Fluminense, em cidades como Duque de Caxias, São Gonçalo e Nova Iguaçu.

Sem algumas melhorias nos indicadores de homicídio nessas três regiões metropolitanas, a manchete dos jornais seria a seguinte: "Explode a violência no Brasil". Foi o desempenho dessas regiões que ajudou a compensar os índices de lugares como Foz de Iguaçu, no Paraná, que, embora ostente uma das maiores belezas do mundo, as famosas cataratas, carrega o incômodo título de capital brasileira da morte de jovens.

Só para dar uma idéia, a queda na média nacional, naquele período, foi de 5%, com a redução, em termos absolutos, de 1.739 mortes -o número é muito próximo do atingido apenas na cidade de São Paulo. Em suma, se a cidade São Paulo não tivesse tido menos assassinatos, a média nacional ficaria estacionada.

Denis Mizne, um dos fundadores do movimento "Sou da Paz", acredita que, como as regiões metropolitanas sofrem há mais tempo com a violência, há maior envolvimento da comunidade na tentativa de solucionar o problema e pressão por maior eficiência policial.

"Há uma série de bairros mais vulneráveis que estão conseguindo combinar repressão com prevenção, unindo os diferentes níveis de governo e a comunidade", diz. Já se viu o que significa a polícia trabalhar com um mapeamento mais preciso sobre o crime e, assim, atuar com menos desperdício.

Esse ensaio de reação nas metrópoles e a novidade no mapa da barbárie brasileira mostram que, em alguns lugares, de tanto morrer se vai aprendendo a viver.

PS - Como quanto mais precisos forem os dados, melhores serão as ações públicas, vale a pena prestar atenção num mapeamento inusitado na cidade de São Paulo, apresentado na sexta-feira passada e, justamente, inspirado no Infocrim, o sistema eletrônico de informação criminal criado para saber, rua a rua, onde está o crime. A partir de agora, é possível saber não só a situação de cada sala de aula das escolas municipais mas a de cada aluno. Levantei, por exemplo, as informações da escola mais próxima de casa. Foi possível saber que 15% dos estudantes acabam a segunda série sem saber ler, enquanto a média da região é de 11,8%, e a da cidade, de 14,6%. Comparei os dados com os de outra escola de uma região com perfil socioeconômico semelhante ao do meu bairro, cujo índice de analfabetismo naquela mesma faixa é de 5,1%; depois, tive acesso aos dados de uma escola que funciona dentro de uma favela, cuja taxa é de 19,2%.

Está aqui uma das chaves da conquista de sociedades menos selvagens: a articulação das comunidades. Já se pode saber, pelo nome, quem está na oitava série com os conhecimentos apenas da sexta série. É algo que, se não ficar no papel -aliás, como fica a maioria das avaliações-, tornará possível focalizar esforços.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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