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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
05/06/2006
A explicação do enigma Lula

Como alguém é capaz de apanhar tanto por tanto tempo e ainda ficar mais forte eleitoralmente?


Um dos mais respeitados estudiosos da realidade social brasileira, o economista Ricardo Paes de Barros fez uma série de cálculos matemáticos que ajudam a esclarecer o enigma de Lula. Como alguém é capaz de apanhar tanto por tanto tempo e ainda ficar mais forte eleitoralmente, como mostraram mais uma vez, na semana passada, Ibope e Vox Populi?

Sabemos que boa parte desse prestígio se deve a programas como o Bolsa-Família, à estabilidade da moeda -o preço dos alimentos cresce abaixo da inflação-, ao aumento do salário mínimo e à geração de empregos. Ricardo Paes de Barros vai mais longe e detalha o impacto dessas ações entre os 20% mais pobres da população. "É como se essas pessoas, sem nenhum exagero, estivessem na China."

Em 2004, por exemplo, nesse segmento mais pobre, o aumento da renda per capita foi de 12%, para um crescimento médio, no país, de 3% -é um movimento que, embora em menor intensidade, vem desde 2000 e perdura até agora.

Os cálculos dele são baseados nas amostragens oficiais realizadas pelo IBGE e se baseiam na redução da desigualdade combinada com o crescimento econômico. "Em geral, as pessoas não percebem o efeito dessa combinação porque não se traduzem os indicadores", diz ele.

É difícil, de fato, entender o que significa uma redução do coeficiente de Gini (medida de concentração de renda), que, de 2000 a 2004, caiu de 0,597 para 0,574. É uma redução de 4%, o que, ainda assim, não diz muita coisa -1% menos ao ano. Parece também não dizer nada que, nesse período, a renda dos 20%, em relação ao total do bolo, subiu de 2,2% para 2,7%. Supondo-se que o crescimento econômico fosse zero e mantida a redução da desigualdade de 1%, a evolução da renda per capita dos mais pobres chegaria a 4%; daí se vê o peso da distribuição de renda.

A tradução desses amontoados de números é o padrão "chinês", ou seja, um aumento médio, nesses quatro anos, de quase 8%. Para os 10% mais pobres, no ano de 2004, o poder aquisitivo subiu 16%.

Em nenhum momento, nem indiretamente, Ricardo Paes de Barros vincula esses dados ao desempenho eleitoral de Lula. Mas é como pode ser entendido o significado do anúncio, na quarta-feira, do aumento de 1,4% do PIB do primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior. Isso indica que, no final do ano, a economia terá crescido algo em torno de 4%.

Na tradução de Paes de Barros, supondo (como ele imagina provável) que a distribuição de renda continue evoluindo, devido à ampliação, por exemplo, dos programas de renda e do salário mínimo, aquela faixa dos 20% mais pobres continuará acima do "padrão chinês". "Esse segmento está na euforia. Ao contrário do que acontece nas camadas mais altas, onde a renda está estagnada ou, em determinadas faixas, caindo", diz. É algo que as pessoas que estão no topo não conseguem sentir e, talvez por isso, tenha sido mais difícil vislumbrar a força de Lula nas camadas mais pobres.

Tal intimidade com os mais pobres explica, pelo menos em parte, por que tanta gente experiente tenha decretado antecipadamente o fim de Lula, a tal ponto que se supunha que o escolhido pelo PSDB já estaria com um pé na Presidência.

Aponta-se, e com certa razão, que boa parte da população não entende as notícias sobre corrupção. Muitos dizem que, no fundo, os brasileiros aceitam o rouba-mas-faz. Fala-se que os mais pobres, segundo pesquisas qualitativas, se recusam a acreditar que Lula - um deles"- esteja vinculado à bandalheira.

Nada disso, porém, teria muita influência se boa parte dos eleitores não sentissem melhoria em suas vidas. Os cálculos de Ricardo Barros, um economista independente, estão mostrando que, em determinado segmento, essa melhoria é muito maior do que se imaginava, daí a resiliência presidencial. Diante disso, termos como choque de gestão, ajuste fiscal, bandeiras de Alckmin, embora relevantes, são, até aqui, abstrações.

PS- Lula é beneficiário da herança bendita de FHC. Herdou a estabilidade de preços e os programas sociais, depois unificados no Bolsa-Família. Alguém teria de ser desonesto para não admitir a influência dessas conquistas nos bons índices do presidente. Assim como seria desonesto não admitir que Lula soube ampliar e aprimorar essa herança. Arrisco dizer que FHC é o grande eleitor de Lula. O drama agora é saber o que virá com a herança maldita a ser deixada por Lula, talvez para ele mesmo, de aumento dos gastos do funcionalismo e das aposentadorias. No seu segundo mandato, caso vença, Lula colherá a tempestade que ele próprio semeou, com a diferença de que não poderá culpar ninguém.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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