REFLEXÃO


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folha de s.paulo
06/01/2008

O melhor show de Nova York

Quando ocorre um crime, os policiais recebem dados de suspeitos daquela vizinhança, o que facilita as investigações


Em 1963, Nova York registrou 500 assassinatos -é o mais antigo registro oficial disponível. Essa estatística, que completou 44 anos, foi o que orientou minha contagem regressiva para a passagem de ano na cidade, por revelar um fato de impacto não apenas para Nova York, especialmente valioso aos brasileiros, metidos numa insegurança generalizada.

Na segunda-feira, véspera do Réveillon, a marca de homicídios estava em 494 casos, seguindo uma tendência praticamente ininterrupta de 15 anos. Até o momento em que escrevo esta coluna, Nova York tinha registrado menos do que as 500 mortes, motivo de comemoração coletiva. Mas as autoridades se mostraram ainda mais ambiciosas: prometeram, para o ano que entra, mais progressos, com aumento do policiamento nos bairros mais violentos. Na minha primeira coluna de 2008, uso esse resultado para mostrar a engenhosidade do poder local, que deveria inspirar os candidatos neste ano eleitoral.

Quando morava em Nova York, no final da década de 1990, muita gente aqui não acreditava que a queda do crime fosse consistente, imaginando que se tratava de fato passageiro. Demorou um bom tempo até que toda a sociedade se convencesse da tendência, produzida graças a uma serie de fatores, como mudanças demográficas, contínuo crescimento econômico e fim da "epidemia do crack".

Montou-se um sistema de policiamento baseado num sofisticado monitoramento de informações e estabeleceram-se metas de crime por região, responsabilizando os delegados. Periodicamente, esse sistema é aprimorado. Atualmente, quando ocorre um crime numa determinada rua, os policiais recebem imediatamente dados sobre todos os suspeitos daquela vizinhança, o que tem facilitado as investigações.

Simultaneamente, coordenou-se uma série de ações de melhoria das escolas, para reduzir a violência. Partiu-se da idéia de que, sem segurança, os professores e alunos jamais teriam condições de aprender. Isso se traduziu em novos programas para os alunos "difíceis", escolas menores, reconhecimento aos professores eficientes, atração de talentos para dar aulas nos piores bairros. Há um esforço para seduzir os melhores universitários e convencê-los a lecionar, mesmo que seja temporariamente.

Significou também arrecadar dinheiro de empresários para ajudar em novos projetos educacionais; em 2007, arrecadaram-se cerca de R$ 700 milhões em doações, o que daria para construir, em São Paulo, cerca de 40 CEUs (Centros de Educação Unificados). Parte desse dinheiro é destinada a um fundo, a ser aplicado neste ano, destinado a premiar os professores das escolas mais problemáticas, cujos alunos tenham demonstrado progressos. Esse prêmio é dado com o apoio do sindicato dos professores, pressionado pela opinião pública.

Instituições privadas aceitam gerir escolas públicas, comprometendo-se com metas rígidas de desempenho, desde que tenham autonomia para contratar e demitir, a seu critério, diretores, professores e supervisores. As notas dessas escolas, geridas pela comunidade, são especialmente animadoras e beneficiam justamente os mais pobres entre os mais pobres.

Para ajudar os alunos, ajudam-se também seus pais, tentando envolvê-los na educação dos filhos. Na área social, Nova York, mais do que ampliar a assistência, passou a exigir mais contrapartidas das famílias beneficiadas. Para cada dólar recebido, existe uma obrigação voltada a cuidados com higiene, saúde, educação e preparação profissional.

Ex-chefes de gangues e ex-drogados são recrutados para contar suas histórias de vida aos adolescentes, que vêm ganhando mais espaços alternativos para tentar desenvolver habilidades. Como se quebrou a norma da impunidade, tão comum nas décadas de 1970 e 1980, ficou um pouco menos difícil enfrentar as gangues e seus domínios nos bairros e nas escolas.

Com apoio do empresariado, desenvolveram projetos de geração de empregos nos bairros mais desolados, criando-se vocações locais. Voltei a visitar algumas dessas regiões, então mais distantes e desoladas e, agora, estão não as reconheci, tantas as novas lojas, prédios e centros de lazer.

Não se vê, na cidade, acomodação; os resultados ainda são considerados insatisfatórios. Mas o recorde de estatística de assassinatos é, em essência, a síntese de um esforço coletivo em diversas áreas. Tais conquistas seriam impossíveis se o prefeito não fosse um grande articulador de recursos e de energias, que colocou a cidade como sua grande meta, não como um trampolim, como ocorre no Brasil. Portanto, o melhor show de Nova York não é o que passa em seus teatros, mas o que vemos em suas ruas.

PS- Completam-se neste janeiro dez anos desde que deixei Nova York, onde aprendi a força capaz de surgir dentro de uma coletividade contra a degradação urbana. Trouxe da cidade um aprendizado de otimismo sobre até onde se vai quando assumimos desafios e responsabilidades.

Na época, escrevi que via os mesmos ingredientes de resistência em São Paulo -que me desculpem os crônicos derrotistas nativos, mas acertei, embora estejamos longe, muito longe, de uma sociedade minimamente civilizada. O primeiro pacto a ser feito, neste ano, é que os candidatos à prefeitura façam da cidade um fim, não um meio, trazendo propostas embasadas em números, não em discursos.

Os dois principais candidatos, Geraldo Alckmin e Marta Suplicy, ambos com indiscutível experiência administrativa e conhecimento da cidade, ainda vão ter de nos convencer de que São Paulo não é um prêmio de consolação para suas frustradas expectativas presidenciais nem um trampolim para as eleições de 2010. Evitar o apagão do trânsito, por exemplo, exige alguém que não se preocupe demasiadamente em ser impopular a curto prazo.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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