O problema
é que o exame molda o ensino médio e se estende
para o fundamental; diminui-se a experimentação
A curiosidade sobre os efeitos sexuais da picada da aranha-armadeira
em homens levou cientistas a investigarem um novo medicamento
contra a disfunção erétil. Experiências
com o veneno mostraram que os camundongos mantiveram, por
duas horas, ereção. Iniciada pela USP e pelo
Instituto Butantan, a investigação será
agora compartilhada pelo Instituto da Próstata, do
hospital Oswaldo Cruz, inaugurado na terça-feira passada.
Apenas esse detalhe já serviria para ilustrar por que
o vestibular, como o conhecemos, morreu, vítima de
uma picada fatal.
Naquele mesmo dia, em Brasília, o ministro da Educação,
Fernando Haddad, iniciava o enterro do vestibular, ao anunciar
um novo modelo de seleção para o ensino superior,
com maior ênfase na reflexão e menos na decoreba
-o cadáver pode até ficar insepulto por certo
tempo (talvez até muito tempo), mas sua extinção
é inevitável.
E a razão disso é visível no Instituto
da Próstata, comandado pelo urologista Miguel Srougi,
professor da USP, impressionado com o ritmo das descobertas
médicas: "De 1964 até 2004, ou seja, 40
anos, se duplicou todo o conhecimento médico disponível.
Estima-se que, de 2004 a 2014, será mais uma vez duplicado".
As pesquisas do centro comandado por Srougi são sinais
dessa velocidade, obrigando a reciclagem e inovação
permanentes -justamente aí está a inutilidade
do vestibular, baseado no acúmulo de conteúdos.
Na semana passada, produziram-se mais sinais desse tipo
de velocidade do conhecimento. Criado em agosto de 2006, o
site de microblogs twitter conseguiu 23 milhões de
usuários (no ano passado cresceu 900%); o Google acenou
com a possibilidade de comprá-lo por meio bilhão
de reais. Já tinham recusado uma oferta de um bilhão
de reais do Facebook. A Universidade da Califórnia
divulgou estudo mostrando que o cérebro tem a capacidade
de saber que um erro vai ser cometido, mas o indivíduo
não tem tempo de decodificar a mensagem. Com base nessa
descoberta da neurociência, planeja-se uma máquina
para quem se submete a tarefas repetitivas e corre o risco
de se distrair. Motoristas dirigindo em estradas, por exemplo.
Foi anunciada a descoberta, no Reino Unido, realizada por
um robô-biólogo, batizado de Adão, que
conseguiu desvendar a função de determinados
genes do processamento de energia dos micróbios. Os
humanos validaram a descoberta.
Até uma guerra de travesseiros, dessas que há
décadas e mais décadas acompanham as crianças,
revela a rapidez da tecnologia. Usando os recursos da internet,
um jovem criou, no Brasil, uma comunidade de guerreiros de
travesseiro -eles anunciaram que, neste final de semana, no
Ibirapuera, farão uma batalha pública.
Surgem rapidamente novas profissões ou novas habilidades
em velhas profissões. A FIA (Fundação
Instituto de Administração), ligada à
USP, fez um levantamento com especialistas sobre as atividades
do futuro. Nenhuma delas tem cursos específicos nas
universidades; seus conhecimentos estão espalhados.
Isso significa a necessidade de uma visão multidisciplinar.
Uma das profissões, segundo a FIA, é "gerente
de ecorrelações".
Miguel Srougi alerta que o bom médico deve necessariamente
desenvolver uma visão multidisciplinar. No Instituto
da Próstata, o paciente será tratado ao mesmo
tempo por urologista, psicólogo, nutricionista, geneticista
etc.
O vestibular pode ser um recurso justo de seleção.
Talvez não escolha os futuros melhores profissionais,
mas, certamente, os melhores alunos são beneficiados.
O problema é que o exame molda o ensino médio
e se estende para o fundamental. Diminui-se o espaço
de experimentação -afinal, para passar no vestibular,
temos de saber a resposta certa; experimentação
é lidar com o erro. Ensina um pouco de tudo, quando
o aconselhável é desenvolver a autonomia de
pesquisa, o que exige ir a fundo nos assuntos.
A atitude dos inventores e inovadores é sempre baseada
na dúvida e no prazer da descoberta. É algo
quase infantil, uma brincadeira de esconde-esconde. O neurocientista
Miguel Nicolelis, candidato brasileiro ao prêmio Nobel
de Medicina, está lançando em livro ("Prazer
em Conhecer") neste mês, um diálogo que
teve como Drauzio Varela, no qual assim define sua profissão:
"Sou pago para ser criança".
Pode até ser que os acadêmicos demorem para
acabar com o vestibular -até porque muitos professores
estão longe das demandas do cotidiano e, em especial,
do mercado de trabalho. Mas a realidade já acabou com
o vestibular e o que se pede não é o bitolado
funcional, mas a curiosidade da criança.
PS - Miguel Srougi diz que essa onda de hiperespecialização
trouxe uma consequência ruim: menos médicos gerais.
É aquele provinciano médico de família,
quase um parente, que lidava com muitas das doenças.
Claudio Lottenberg, presidente do hospital Albert Einstein,
concorda e diz que essa figura, tão antiga, é
um dos médicos do futuro.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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