REFLEXÃO


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urbanidade
06/06/2007
Morando num museu

Entregou-se a uma exótica paixão: pesquisar os sons de instrumentos musicais usados entre os séculos 5º e 16



Depois que se separou da mulher, em 1981, Roberto Holtz decidiu simplificar a vida. Reduziu seus gastos e entregou-se a uma exótica paixão: pesquisar os sons de instrumentos musicais usados entre os séculos 5º e 16. Dessa pesquisa surgiu uma coleção que transformou sua casa, no Alto de Pinheiros, num misto de ateliê e museu com peças raras, mas quase sem visitação. "É um desperdício", reconhece.

O museu nasceu por acaso. Além de aumentar sem parar sua coleção e de distribuí-la pelos cômodos, Roberto montou ali uma oficina para a fabricação dos instrumentos, alguns com formas estranhas. "Encantei-me com a descoberta desses sons." Ficou, assim, conhecido por um seletíssimo grupo de músicos de dentro e de fora do Brasil, que hoje lhe fazem encomendas. "Passei a ter mais demanda do que eu poderia atender." Há uma fila de pedidos não atendidos, mas, em nome de uma vida mais simples - preferiu morar na casa dos pais-, ele mantém um esquema artesanal.

Com a situação financeira sem tanta pressão, Roberto incomodou-se com a solidão. "Não só quase ninguém vê minha coleção como menos gente ainda conhece os sons desses instrumentos." Deu-lhe, então, vontade de ensinar. Mais uma reviravolta. Ele não gostava de ir à escola e, apenas por intensa pressão dos pais, matriculou-se numa faculdade. "Procurei um curso que, na minha visão, não exigisse nada. Nem vestibular." Matriculou-se numa faculdade privada de turismo. "Nem isso eu suportei." Sem diploma de ensino superior, trabalhava como arquiteto, proibido de assinar projetos. "Eu me cansei de fazer esse papel." O aluno relapso tornou-se professor apaixonado pelos sons daqueles exóticos instrumentos, mas passou a ficar incomodado com o fato de dar aulas a alunos apenas da elite econômica. "Queria ir mais longe." Agora, tem medo de ter ido longe demais.

Na sua coleção existem uma flauta de apenas três orifícios e instrumentos de corda que, imaginou, poderiam ser tocados por pessoas deficientes - cegos, por exemplo. Saiu à cata de recursos para essa experiência, sem maiores esperanças de conseguir apoio. "Para minha surpresa, rapidamente uma empresa quis me patrocinar." Não supunha, porém, que a papelada exigida para usar o dinheiro de incentivo fiscal deixaria seu cotidiano complicado, em meio a prestações de contas e auditorias.
Não conseguiu gastar um único centavo nem atrair deficientes interessados em aprender música nos seus instrumentos. "Fui a entidades que cuidam de cegos, mas, até agora, ninguém apareceu."

Nesta semana, ele está tentando atrair aos encantos das músicas tocadas na Idade Média e na Renascença, em vez de pessoas deficientes, alunos de escolas públicas. "Gostaria também de ensinar a fazer o instrumento." Neste momento, apesar das boas encomendas e do prestígio internacional como artesão, ele confessa sentir-se sozinho - tão sozinho como se vivesse num museu virtual.

PS - Veja as foto dos instrumentos de Roberto. É uma saborosa viagem pelo tempo.

Fotos:
Hurd- gurd
Flautas contra baixo (são do tamanho de uma pessoa de estatura média)
Salteiros
Violas de gamba
Cravo, harpa e vila de gamba
Alaudes
Basset- horn e Serpentão
Trompa natural e rocket
Estúdio do Roberto com instrumentos barrocos


Coluna originalmente publicada na Folha de São Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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