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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
08/05/2006
O circo do cidadão

Um grupo de empresários, executivos e trabalhadores está preparando uma bem-humorada e inusitada festa, em SP, para o próximo dia 25, com direito a cervejada. Nessa data, eles vão comemorar a "libertação dos impostos". Já não precisariam pagar nem mais um centavo para o governo até o final do ano.

A escolha da data "festiva" está baseada na contagem de especialistas tributários: os brasileiros trabalham quatro meses e 25 dias todos os anos apenas para sustentar o poder público, ou seja, R$ 750 bilhões. Encerra-se, em 25 deste mês, o número de meses e dias em que trabalhamos para o Estado. Daí a data da "libertação", ironizam os organizadores da festa.

Por trás dessa brincadeira, há um movimento que merece a atenção por mexer no jogo político. É uma ofensiva para limitar o poder dos governantes e aumentar a força dos cidadãos. Um dos sinais dessa ofensiva é a lista com 1,5 milhão de assinaturas a favor de uma lei exigindo que seja revelado, nas embalagens, quanto é a parte do governo no preço de cada produto; assim como se informam as calorias.
É uma rudimentar lição de cidadania, dessas que deveríamos aprender nos primeiros anos do ensino fundamental. O impacto dessa simples mudança pode ser nada desprezível.

Uma série de pesquisas tem mostrado que os cidadãos não fazem a menor idéia da fatia do poder público em cada compra de um produto. Pior ainda, uma significativa parcela dos mais pobres nem ao menos sabe que paga impostos indiretos.
Batizado de "De olho no imposto", esse movimento quer ajudar a todos que sintam, com precisão, o tamanho da mordida oficial ao comprar uma caixa de fósforos, um sabão ou encher o tanque do carro. Essa campanha é mais um desdobramento do esforço bem-sucedido, no ano passado, contra a tentativa de o governo aumentar os impostos das empresas.

Dessa campanha nasceu o "impostômetro", um painel luminoso colocado nas ruas que atualiza a cada segundo o volume de dinheiro que sai dos nossos bolsos para os governantes. Está agora em preparação por especialistas em orçamento público o "gastômetro": saberemos, por exemplo, quanto se paga por segundo para bancar a folha de pagamentos dos governos federal, estadual e municipal. Ou quanto se gasta com as aposentadorias dos funcionários do Legislativo, Executivo e Judiciário.

A agenda que vai cada vez mais orientar o país é simples e não tem volta: 1) ninguém quer dar mais dias de trabalho para o governo, os tais quatro meses e 25 dias já beiram o insuportável, ainda mais levando em consideração a péssima qualidade dos serviços públicos oferecidos; 2) o processo democrático implica cada vez mais reivindicações por melhor educação, habitação, cultura, lazer, empregos.
O eleitor quer mais benefícios, mas o poder público está cada vez mais acuado na sua fúria tributária. De onde tirar o recurso? A conscientização, em detalhes, sobre o percurso dos impostos vai fazer que, com o tempo, os donos do poder sejam mais fiscalizados e mais foco de irritação. Quem não entender essa agenda, pode apostar, vai quebrar a cara; menos por uma questão moral, mas por falta de alternativa.

Na semana passada, vimos um caso exemplar: a dificuldade que as pessoas tiveram para comprar um ingresso do magnífico Cirque du Soleil, que fará uma temporada no Brasil. É gente que se dispunha (e muitos não conseguiam) a pagar até R$ 300 por ingresso.

Ocorre que o grupo empresarial que trouxe esse circo obteve milhões de reais em dinheiro público através de leis de estímulo à cultura. Diga-se que não há nada de ilegal nessa transação. Mas por que, afinal, um espetáculo que conseguiria ser rentável vendendo ingresso e obtendo patrocínios privados precisa de dinheiro público? Ou seja, eles receberam uma parte do tempo dos quatro meses e 25 dias -e, aí, o circo não tem nenhuma graça. É uma parte ínfima, é verdade. Mas de pequeno desperdício em pequeno desperdício vamos criando rombos.

Se pudessem conhecer a rede de pequenas, grandes e médias despesas desse tipo, os cidadãos se sentiriam num circo. É essa consciência de que somos palhaços no picadeiro que está embutida na lista de 1,5 milhão de pessoas que buscam apenas mudar a embalagem dos produtos -e fazer com que, diante de uma caixa de fósforos e não só nas urnas, as pessoas se percebam com direitos e deveres.

P.S. - Na semana passada, vimos um exemplo de gasto que valoriza nosso imposto. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou dados mostrando que, de 1992 a 2004, caiu expressivamente o número de crianças no mercado de trabalho. Isso se deve, em parte, a uma notável mobilização comunitária e ao programa lançado na década de 90 de dar uma bolsa (Peti) às famílias cujos filhos trabalham e, mais ainda, exigir que, além de ficar na escola, a criança passe por atividades extracurriculares. Estamos falando de 3 milhões de crianças que saíram do mercado de trabalho. Não estou discutindo aqui que se baixe o imposto, mas apenas que seja melhor usado. Não é o que acontece, por exemplo, quando um aluno de ensino superior público custa várias vezes mais do que o do ensino fundamental.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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