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REFLEXÃO


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urbanidade
08/11/2006
Misturas de outro mundo

Entre seres em transe e batidas de atabaque, surgiu a inspiração para misturar o tupi, o rap e as raízes africanas


Tocador de atabaque num terreiro de umbanda em Vila Medeiros, na zona norte, Renato Dias ficou intrigado, certa noite, com as frases balbuciadas, em aparente transe, por um guia espiritual. Disseram-lhe que talvez fosse uma língua indígena. Uma das entidades da umbanda é o caboclo, que representa o índio brasileiro.
Independentemente de quaisquer convicções religiosas, aquela cena acabou se materializando no primeiro CD de rap com as letras em tupi de que se tem notícia. "Fiquei interessado na sonoridade daquelas palavras", diz Renato, que se prepara para lançar, neste mês, as músicas de "Kaumoda", que, em tupi, significa uma entidade espiritual maligna. O projeto só foi possível graças a uma inusitada mistura de um terreiro de umbanda com o rigor acadêmico da Universidade de São Paulo.

Depois daquela cena no terreiro, Renato Dias foi procurar ajuda na USP e encontrou o professor Júlio Pedrosa, um dos raros especialistas em tupi, língua falada pelos índios na costa brasileira. Dedicou-se, então, nos últimos dois anos a aprender os rudimentos da língua. "Fiquei seduzido pela melodia das palavras." Mas já sabia que, dali, sairia inspiração para um projeto musical, mas com um ritmo bem distante do que se ouve nos terreiros: o rap. "Essa mistura expressa como eu vejo a alma da cidade."

Os cultos afros são a principal fonte de inspiração de Renato Dias, que, desde menino, freqüenta os terreiros na zona norte. Foi daí, entre seres em transe e batidas de atabaque, que ele tirou inspiração para misturar o rap e as raízes africanas. Quando ouviu aquelas palavras incompreensíveis, supostamente em tupi, imaginou-se diante de mais um pedaço da "alma" musical paulistana, com sua diversidade. "Por que não misturar a batida do rap com a sonoridade de um língua dos índios?"

Além de ajudá-lo a compor rap, os terreiros serviram para Renato se interessar pela cultura africana em geral e pelo samba em particular. Por ser um reduto de ex-escravos, a zona norte, onde Renato sempre morou, é um local apropriado para esse tipo de interesse.

Entrou, então, no grupo Kolombolo, que pesquisa as raízes do samba paulistano. "Muitos compositores estão bem velhos e não tinham registro de sua obra." Já há 70 horas de gravações de conversas e melodias a serem divulgadas ao público. Ali estão, por exemplo, as histórias do Nenê de Vila Matilde, entre muitos que ajudaram a criar as escolas como Vai-Vai, Peruche e Lavapés.

Entusiasmado com o projeto, o musico e empresário Guga Stroeter viabilizou um apoio para que o Kolombolo tivesse um estúdio de gravação. Fazer rap em tupi, inspirado na umbanda e auxiliado pela USP, é uma mistura exótica. Mas não tão exótica quanto a realizada por Renato Dias e pelo Kolombolo no carnaval passado, quando estimularam pacientes de programas de saúde mental a produzir um bloco e sair desfilando pelas ruas de São Paulo junto com seus psiquiatras -esta, sim, uma mistura de outro mundo.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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