O direito
à educação é, em essência,
o direito ao deslumbramento permanente
ante a vida
Diante da bagunça, dois jovens de uma escola particular
da cidade de São Paulo (o colégio Santa Cruz)
logo perceberam que sua idéia de dar aula de filosofia
para estudantes da rede pública estava condenada ao
fracasso -a classe se dividia, basicamente, entre os que "zoneavam"
e os silenciosos desinteressados. Foram todos salvos por uma
música.
Na semana passada, em vez de começar a aula com falatório,
os dois adolescentes puseram um rap para os alunos ouvirem
e distribuíram a letra a eles. Conseguiram, então,
motivar uma discussão sobre temas como violência,
solidão e esperança. Nem parecia uma aula de
filosofia -aliás, nem parecia uma aula.
A magia operada por aquela música revela o "deslumbramento
pelas coisas belas" -essa expressão foi usada
pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF) ao justificar seu
projeto, lançado na semana passada, que determina a
exibição periódica de filmes nacionais
nas escolas.
A única questão relevante na discussão
lançada pelo governo federal sobre a possibilidade
de mudar a legislação de incentivo cultural
-uma bolada anual de R$ 1 bilhão- é a democratização
do deslumbramento diante da beleza.
Um dos argumentos para a mudança da legislação
é a crítica de que parte dos recursos canalizados
pelas empresas vai para ações culturais destinadas
a platéias de maior poder aquisitivo e nas regiões
mais ricas.
Muita gente séria aceita essa crítica, mas vê
com desconfiança (também corretamente) o risco
de criar um fundo de cultura gerido apenas pelo governo, sujeito
a vícios como a corrupção e o desperdício,
sem contar os apadrinhamentos políticos. Um exemplo
recente de má gestão de recursos foi o que ocorreu
com o Fust, que, destinado a conectar escolas à internet,
arrecadou nada menos que R$ 8 bilhões e, sem exagero,
não serviu para quase nada.
Argumenta-se também (mais uma vez com razão)
que os empresários se sentiriam menos estimulados a
colocar dinheiro na cultura se não pudessem escolher
os beneficiários e, assim, valorizar sua marca.
Já vi aquele tipo de experiência dos adolescentes
que usaram o rap para dar aula de filosofia aplicada dos mais
diferentes modos e nos mais diversos lugares, quase sempre
com resultados estimulantes. É uma fórmula eficaz
para desenvolver o prazer de conhecer. É certo que
a arte não deve ser condicionada a nada, deve apenas
ser a expressão livre do artista, mas a arte bancada
com imposto deve ter uma contrapartida em educação
pública.
Será divulgada nesta semana, durante seminário
em São Paulo sobre lei de incentivo cultural, uma pesquisa
do Datafolha que, entre outros pontos, mostra um forte crescimento
da freqüência aos museus entre os paulistanos.
Esse é um exemplo de dinheiro mais bem empregado.
De acordo com a pesquisa, 65% dos que foram a exposições
neste ano são estudantes de escolas do ensino fundamental
e médio; 47% pertencem às classes C, D e E.
É claro que esse seria o recurso mais bem empregado
se os professores soubessem (e poucos sabem) como usar aquela
visita ao museu para tornar mais atrativo o que eles ensinam
em sala de aula. Isso significa que as verbas de incentivo
à cultura deveriam contemplar não só
o acesso mais amplo aos bens culturais mas também a
capacitação de educadores.
O direito à educação é, em essência,
o direito ao deslumbramento permanente ante a vida. Nada melhor
que a arte para servir de introdução a essa
aventura. O deslumbramento com as coisas belas revela o que
nós somos e o que podemos ser -por isso, e só
por isso, aqueles meninos e meninas aceitaram discutir filosofia
tomando como ponto de partida a letra do rap.
PS- Na coluna passada, escrevi sobre Dona Gema, a professora
de escola pública da periferia de São Paulo
que ajudou Sandra Corveloni, vencedora do prêmio de
melhor atriz em Cannes, a se deslumbrar pelo aprendizado.
Fazia das aulas uma festa, com sua "contação"
de histórias, suas lições de artes plásticas
e suas cantigas de roda. A atriz não lembrava o sobrenome
da professora. Nem mesmo sabia se estava viva.
Com a ajuda de internautas, consegui localizá-la. Chama-se
Gema Aparecida Cerqueira. Ela explica o fascínio que
exercia em crianças como Sandra porque tentava se comportar
como se fosse um mágico sempre trazendo surpresas de
uma mala ou cartola -daí sempre recorrer à arte.
No final do ano, ela mesma produzia um presente para cada
um de seus alunos. Aposentada, ela só usa seus encantos
para educar os netos. Se voltasse a dar aulas hoje na periferia,
talvez a situação desanimadora a levasse a desejar
fazer uma única mágica: a de desaparecer -e
deixaríamos de fazer gente como Sandra aparecer com
sua arte.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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