REFLEXÃO


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folha de s.paulo
09/06/2008

O direito ao deslumbramento

O direito à educação é, em essência, o direito ao deslumbramento permanente
ante a vida


Diante da bagunça, dois jovens de uma escola particular da cidade de São Paulo (o colégio Santa Cruz) logo perceberam que sua idéia de dar aula de filosofia para estudantes da rede pública estava condenada ao fracasso -a classe se dividia, basicamente, entre os que "zoneavam" e os silenciosos desinteressados. Foram todos salvos por uma música.

Na semana passada, em vez de começar a aula com falatório, os dois adolescentes puseram um rap para os alunos ouvirem e distribuíram a letra a eles. Conseguiram, então, motivar uma discussão sobre temas como violência, solidão e esperança. Nem parecia uma aula de filosofia -aliás, nem parecia uma aula.

A magia operada por aquela música revela o "deslumbramento pelas coisas belas" -essa expressão foi usada pelo senador Cristovam Buarque (PDT-DF) ao justificar seu projeto, lançado na semana passada, que determina a exibição periódica de filmes nacionais nas escolas.

A única questão relevante na discussão lançada pelo governo federal sobre a possibilidade de mudar a legislação de incentivo cultural -uma bolada anual de R$ 1 bilhão- é a democratização do deslumbramento diante da beleza.

Um dos argumentos para a mudança da legislação é a crítica de que parte dos recursos canalizados pelas empresas vai para ações culturais destinadas a platéias de maior poder aquisitivo e nas regiões mais ricas.

Muita gente séria aceita essa crítica, mas vê com desconfiança (também corretamente) o risco de criar um fundo de cultura gerido apenas pelo governo, sujeito a vícios como a corrupção e o desperdício, sem contar os apadrinhamentos políticos. Um exemplo recente de má gestão de recursos foi o que ocorreu com o Fust, que, destinado a conectar escolas à internet, arrecadou nada menos que R$ 8 bilhões e, sem exagero, não serviu para quase nada.

Argumenta-se também (mais uma vez com razão) que os empresários se sentiriam menos estimulados a colocar dinheiro na cultura se não pudessem escolher os beneficiários e, assim, valorizar sua marca.

Já vi aquele tipo de experiência dos adolescentes que usaram o rap para dar aula de filosofia aplicada dos mais diferentes modos e nos mais diversos lugares, quase sempre com resultados estimulantes. É uma fórmula eficaz para desenvolver o prazer de conhecer. É certo que a arte não deve ser condicionada a nada, deve apenas ser a expressão livre do artista, mas a arte bancada com imposto deve ter uma contrapartida em educação pública.

Será divulgada nesta semana, durante seminário em São Paulo sobre lei de incentivo cultural, uma pesquisa do Datafolha que, entre outros pontos, mostra um forte crescimento da freqüência aos museus entre os paulistanos. Esse é um exemplo de dinheiro mais bem empregado.

De acordo com a pesquisa, 65% dos que foram a exposições neste ano são estudantes de escolas do ensino fundamental e médio; 47% pertencem às classes C, D e E. É claro que esse seria o recurso mais bem empregado se os professores soubessem (e poucos sabem) como usar aquela visita ao museu para tornar mais atrativo o que eles ensinam em sala de aula. Isso significa que as verbas de incentivo à cultura deveriam contemplar não só o acesso mais amplo aos bens culturais mas também a capacitação de educadores.

O direito à educação é, em essência, o direito ao deslumbramento permanente ante a vida. Nada melhor que a arte para servir de introdução a essa aventura. O deslumbramento com as coisas belas revela o que nós somos e o que podemos ser -por isso, e só por isso, aqueles meninos e meninas aceitaram discutir filosofia tomando como ponto de partida a letra do rap.

PS- Na coluna passada, escrevi sobre Dona Gema, a professora de escola pública da periferia de São Paulo que ajudou Sandra Corveloni, vencedora do prêmio de melhor atriz em Cannes, a se deslumbrar pelo aprendizado. Fazia das aulas uma festa, com sua "contação" de histórias, suas lições de artes plásticas e suas cantigas de roda. A atriz não lembrava o sobrenome da professora. Nem mesmo sabia se estava viva.
Com a ajuda de internautas, consegui localizá-la. Chama-se Gema Aparecida Cerqueira. Ela explica o fascínio que exercia em crianças como Sandra porque tentava se comportar como se fosse um mágico sempre trazendo surpresas de uma mala ou cartola -daí sempre recorrer à arte. No final do ano, ela mesma produzia um presente para cada um de seus alunos. Aposentada, ela só usa seus encantos para educar os netos. Se voltasse a dar aulas hoje na periferia, talvez a situação desanimadora a levasse a desejar fazer uma única mágica: a de desaparecer -e deixaríamos de fazer gente como Sandra aparecer com sua arte.



Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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