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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
11/04/2005
Não dê esmola. Dê futuro

Uma criança consegue ganhar, em média, R$ 500 por mês nos semáforos da cidade de São Paulo, segundo pesquisas realizadas por assistentes sociais da prefeitura. É possível tirá-la da rua?

Como já estamos habituados a ver meninos e meninas pedintes como extensão da paisagem urbana e conhecemos o tamanho da miséria brasileira, a reação automática é responder não.

Com o slogan "Não dê esmola. Dê futuro", foi lançada pela prefeitura, na quinta-feira passada, em São Paulo, uma articulação entre a sociedade e prefeitos da região metropolitana para tentar mudar essa crônica paisagem de crianças pedintes.

Pela amplitude desse projeto, não se trata de uma experiência qualquer.

Vamos aprender sobre os limites de uma comunidade para combater os sinais mais explícitos da pobreza mais aguda. E, de quebra, sobre a habilidade de José Serra em administrar ações sociais. Aliás, uma pesquisa do Datafolha sobre os três meses de mandato, divulgada hoje, mostra que ele ainda está longe de convencer sobre sua eficiência gerencial, tão propalada durante a campanha. Aparece com 37% de ruim e péssimo; está pior do que Erundina, Marta, Maluf e Celso Pitta. De acordo com a pesquisa, se a eleição fosse hoje, Marta não teria perdido.

Não se trata de uma experiência qualquer. Está se envolvendo nessa operação um forte esquema de poder. Governos estadual e municipal, associações comunitárias, mídia, empresários, fundações e ONGs terão de responder se conseguem lidar, em uma cidade de 10 milhões de habitantes, com 3.000 crianças espalhadas em aproximadamente 200 cruzamentos.

Três mil crianças podem parecer um detalhe insignificante -e, numericamente, não passam disso- num cenário de degradação urbana. Há, porém, nessa mendicância um monumental valor simbólico, capaz de sintetizar uma incompetência coletiva.

O dinheiro arrecadado por aquele trabalhador infantil é dividido entre os intermediários -os grupos que se apossaram do território e cobram "pedágio" das crianças- e os familiares ou adultos que agenciam a mendicância. A pancada é o recurso empregado para manter essa exploração.

Esses trabalhadores sabem que, se voltarem para casa de mãos vazias, irão enfrentar adultos irados, dispostos a puni-los. Suas casas são marcadas pela falta de estrutura familiar, pelo alcoolismo e pela promiscuidade sexual, numa química da violência cotidiana.

Desenhou-se um plano que, pelo menos no papel, é bom, como, aliás, a maioria deles quando estão no papel.

Além de saírem das ruas, as crianças seriam mantidas na escola e em atividades educativas complementares na comunidade; ficariam, assim, boa parte do dia aprendendo alguma coisa útil, num esquema de pós-escola.

As famílias receberiam uma renda mensal como uma espécie de compensação pela perda do dinheiro que deixaria de ser adquirido na forma de esmola. Não aceitar o acordo faria a mãe ou o pai perderem a guarda do filho. Os adultos agenciadores seriam indiciados pela polícia e processados pela Justiça.

Assistentes sociais percorreriam diariamente as ruas para encaminhar as crianças e seus familiares aos programas. Por meio de placas, os motoristas seriam informados sobre números de telefone para chamar assistentes sociais. Além disso, também receberiam orientação sobre os meios de fazer doações a entidades capazes de cuidar dos mendigos mirins.

Firmou-se um acordo entre os 39 municípios que fazem parte da região metropolitana de São Paulo por um motivo óbvio: vêm diariamente dessas cidades muitas crianças para a capital. Cada prefeito, portanto, trataria de fazer a sua parte para evitar a marginalidade infantil. No mais, porque, de fato, somos uma mancha urbana de 18 milhões; as fronteiras são quase formais.

Em essência, a aposta é a seguinte: os motoristas dariam menos esmola por confiar na ação do poder público em parceria com a sociedade. Menos dinheiro, menos crianças nos semáforos. Além disso, uma vez criado um sistema de ronda pelos assistentes sociais, pais e agenciadores de pedintes teriam menor sensação de impunidade.

Talvez essa aposta fique só no papel. E aí estará visível, tanto quanto as crianças nos semáforos, a fragilidade de toda uma comunidade, a começar de seus governantes, em enfrentar inclusive as formas mais absurdas de exploração.
Teríamos de aceitar como inevitável, em pleno terceiro milênio, na cidade mais global e tecnologicamente mais avançada do país, a convivência, bem em nossa frente, de seres tratados como escravos.

É terrível, mas não deixa de ser um aprendizado.

PS - A pesquisa do Datafolha é valiosa para medir a temperatura. Mas não se julga um governo em apenas três meses; os processos demoram a mostrar resultados. A favor dele diga-se que não partiu para a pirotecnia, não torrou dinheiro com publicidade e assumiu imensas dívidas de curto prazo. Serra, porém, ainda não soube informar qual é o seu projeto para São Paulo. Ele falou tanto em planejamento, mas não sabemos ao certo aonde ele quer chegar. É natural que a opinião pública, incensada pela expectativa de campanha, fique ainda mais absorvida pelo imediato.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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