Não
é necessário traduzir o que vimos no Rio. É
das piores cenas que já testemunhamos de banalização
da vida
Na quarta-feira, o país viu duas tragédias
ao mesmo tempo - uma delas apresentada em complexos gráficos;
a outra, em sangue.
Um garoto de seis anos foi arrastado, no Rio, por um carro
durante 15 minutos, espalhando rastros de carne humana por
14 ruas, num total de 7 km; quatro jovens foram presos -um
deles de 16 anos. "Foi a pior coisa que vi na vida",
resume o delegado Hércules Pires Nascimento, com 30
anos na polícia. A imagem do que sobrara do garoto,
com os ossos penetrando o corpo sem a cabeça, lembrava
um varal.
De Brasília, foram liberadas estatísticas mostrando
que, nos últimos dez anos, piorou o desempenho dos
estudantes e aumentou a evasão. Só no ensino
médio, perderam-se, de 2005 a 2006, 126 mil pessoas,
muitas das quais não vão mais estudar e, provavelmente,
nem trabalhar.
As duas tragédias se complementam e se explicam - a
começar do fato de que aqueles três criminosos
têm o perfil dos jovens que saem da escola bem antes
do tempo e, por isso, entre outras razões, são
seduzidos pela criminalidade.
Pela crueza das imagens, não é necessário
traduzir o que vimos no Rio. É das piores cenas que
já testemunhamos de banalização da vida
- e nos leva a ter vontade de banalizar ainda mais a vida,
fazendo justiça com as próprias mãos.
A tradução dos números divulgados em
Brasília é mais complexa, tantas são
as tabelas que correspondem a notas que, por sua vez, são
ligadas a uma imensa gama de habilidades e conhecimentos para
cada série escolar.
Um bom resumo (com certa imprecisão, admito) é
o seguinte: um aluno do último ano do ensino médio
público sabe bem menos que um estudante da 8ª
série do ensino fundamental privado.
Mas esse aluno da escola particular provavelmente está
no nível da 5ª série da Coréia do
Sul. Basta ver estudos publicados que indicam que apenas 21%
dos estudantes da elite brasileira conseguem ter notas que
os colocam em boa posição nos testes comparativos
internacionais.
Há vários economistas que, a partir de fórmulas
matemáticas, são capazes de calcular quanto
significa em termos de renda do indivíduo e do país
cada ano a mais de escolaridade. Pode-se estimar, por exemplo,
quanto representam em dinheiro aqueles 126 mil jovens que
deixaram as salas de aulas entre 2005 e 2006, por não
gerarem, no futuro, renda. Tais exercícios da econometria,
desenvolvidos nas universidades americanas, vão se
aprimorando periodicamente e ajudam a trazer para o debate
educacional a elite empresarial. Empresários já
conseguem medir quanto vale um trabalhador bem preparado para
o aumento da produtividade e, portanto, de seus lucros. Políticos
brasileiros já entendem o valor estratégico
do capital humano.
O que não temos ainda são números tão
precisos para mostrar a relação entre baixa
educação e criminalidade. A relação
é inquestionável pelo simples fato de que a
escola ruim é a segunda porta para a marginalidade;
a primeira é a família desestruturada.
Existem, porém, fórmulas que ajudam a comprovar
essa relação. Pesquisadores da Faculdade de
Economia da Universidade de Chicago analisaram dados de criminalidade
de várias cidades americanas, associando-os a uma imensa
lista de fatores socioeconômicos.
Não se constatou uma relação direta entre
a quantidade de pobres e a criminalidade. O que se viu foi
que, quanto mais valorizadas as instituições
de uma comunidade - família, igreja, escola, polícia,
associações recreativas -, menor a violência.
Isso se revela no senso de pertencimento e na disposição
do grupo de trabalhar junto em torno dos desafios. Os modelos
são positivos.
Parte dessa rede de confiança se constrói dentro
ou no entorno da escola, um dos espaços de elaboração
de perspectivas de vida.
Sentir ódio daqueles criminosos arrastando a criança
faria, de fato, a diferença, se fosse acompanhado do
ódio às circunstâncias que contribuíram
com aquela barbárie, como a fragilidade educacional,
a má gestão de programas sociais e o baixo crescimento
econômico provocado por nossa incompetência.
PS: Se saírem do papel e forem bem executadas, 3 das
ações em estudo pelo governo federal ajudariam
a reduzir o tamanho da tragédia: 1) levar o programa
de saúde da família à escola, pois parte
expressiva dos alunos vai mal por causa de doenças
simples de serem tratadas; 2) apoio em recursos à prefeitura
que lançar programas que envolvam a comunidade no processo
de aprendizado e mantenham o aluno, dentro ou fora da escola,
em alguma atividade complementar; 3) extensão do Bolsa
Família a jovens de até 17 anos.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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