REFLEXÃO


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urbanidade
12/09/2007

Um arquiteto no ringue

Junto aos instrumentos de boxe, surgiram coisas que, provavelmente, não se vêem em nenhuma academia

Igor Guatelli trilhou, na USP, um peculiar caminho acadêmico. Depois de concluir o mestrado em arquitetura, fez uma pós-graduação em filosofia, interessado nas várias formas de apropriação dos espaços vazios de uma cidade pela população. Além de ler os livros -buscou orientação especialmente em filósofos franceses-, ele observava como garotos de patins davam um novo significado à marquise do parque Ibirapuera, projetado por Niemeyer, ou como a convivência criada pela feira de antigüidades humanizava o imponente vão do Masp, da arquiteta Lina Bo Bardi.

O que, todavia, o impressionou mesmo não foram as linhas elegantes do Masp e do Ibirapuera. Em meio a mendigos e a crianças drogadas que se apropriam de áreas abandonadas, o arquiteto descobriu um boxeador que, debaixo de um viaduto, esmurrava um pneu velho, improvisadamente enchido com areia. Naqueles socos, ele sentiu a tradução de sua hermética tese de doutorado -e, mais do que isso, uma chance de tirá-la do papel.

Professor de projetos na Faculdade de Arquitetura do Mackenzie, Guatelli ficou impressionado, em especial, com a combinação de elementos trazidos pelo ex-boxeador profissional e treinador Nilson Garrido, arrumados sob o viaduto do Café, na Bela Vista: um ringue desnivelado, pneus, uma mola de caminhão para fortalecer os músculos, uma geladeira para substituir os tradicionais sacos de areia, bicicletas ergométricas. O espaço acabou atraindo meninos de rua, mendigos, carroceiros e aspirantes a boxeador. "Descobri como muitos dos meninos até chegaram a largar as drogas depois que começaram a lutar", conta Nilson.

Por causa disso, junto à parafernália de instrumentos de boxe, em torno da movimentação do ringue, cercado de dióxido de carbono por todos os lados, foram surgindo coisas que, provavelmente, não se vêem em nenhuma academia do planeta: uma biblioteca, especialmente com livros infantis e juvenis, e uma brinquedoteca. "Nunca tinha visto nada parecido", comenta Guatelli.

Ele próprio saiu da prancheta e resolveu subir num ringue para brigar por dinheiro. Sensibilizou alguns de seus alunos e os levou a redesenhar aquela academia e fazer dela uma espécie de laboratório para uso dos viadutos. "Os viadutos têm como função aproximar pontos distantes, mas acabaram desarticulando espaços próximos." Seu projeto trataria, então, de desfazer essa desconexão.

Com o projeto debaixo do braço, ele saiu à caça de dinheiro com empresários. Bateu em repartições públicas e recebeu uma informação que o deixou eufórico. Soube que já estavam planejadas obras exatamente debaixo do viaduto do Café e que iriam ter de desalojar temporariamente Garrido. Aproveitou para pedir que, já que mexeria mesmo naquele lugar, a prefeitura deixasse prontas as estruturas para montar a academia. "Ficaria bem mais barato." As obras começaram, de fato, mas não veio nenhuma resposta.

Guatelli está levando vários socos, mas ainda não jogou a toalha. "Talvez eu já esteja aprendendo, debaixo do viaduto, a brigar", ironiza.


veja O Projeto da Academia:
parte 1
parte 2
parte 3
parte 4
parte 5
explicação

Link relacionado:
Uma alternativa para o viaduto Júlio de Mesquita Filho, no bairro do Bexiga

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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