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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
14/11/2004
Se a classe média soubesse...

A sorte dos governantes é que a classe média não sabe responder a uma pergunta simples: quantos dias alguém trabalha num ano apenas para manter o poder público?

Se soubesse mesmo responder a essa questão e nunca se esquecesse da resposta, sua irritação contra os governantes seria muito maior do que se viu, transformada em voto, nas eleições deste ano. Essa irritação é o que explica, em parte, a derrota do PT em cidades como São Paulo, Curitiba ou Porto Alegre.

Suponha um indivíduo com a renda de R$ 2.500 mensais. Entre impostos diretos e indiretos (aqueles embutidos no preço dos produtos), ele deve pagar 30% do que ganha. Em quantos dias trabalhados apenas para pagar as despesas dos governos isso se traduz? Vamos lá.

Descontando-se 30% em impostos - valor médio dos tributos pagos pela classe média-, temos o seguinte: R$ 9.000 por ano. Dividamos esse valor pela renda mensal de nosso contribuinte, que é de R$ 2.500. Resultado: 3,6. Ou seja, ele despende 3,6 meses por ano apenas para pagar seus impostos, o equivalente a 107 dias.

Imagine, caro leitor, que você nunca se esquecesse de que, durante esses 107 dias, mais de três vezes o seu período de férias, você trabalha apenas para manter o poder público, ao qual paga muito e do qual recebe pouco -afinal, muitas vezes, o que recebe (quando recebe) é um serviço ruim.

É natural que, para esse segmento, o que significar a mistura de poder com impostos e desemprego entre na mira -seja do PT, seja de qualquer outro partido. A irritação é não só compreensível mas justificável.

Além de pagar muito imposto e receber pouco de volta, a classe média perdeu poder aquisitivo nos últimos cinco anos; estima-se que tenha perdido, em geral, um terço de sua renda.

Na quinta-feira, a Folha divulgou estudo do economista Waldir Quadros, da Unicamp, que trazia uma estimativa devastadora. Nada menos que 2,5 milhões de pessoas perderam a condição de classe média (renda superior a R$ 1.000 mensais) -e isso só no ano passado.

Isso representou uma redução do acesso a certos ícones, tão reverenciados pela classe média: escola particular para os filhos, restaurantes, cinemas, teatros, viagens, clubes. Calcula-se ainda que, nos últimos cinco anos, cerca de 4 milhões de pessoas tenham abandonado os planos privados de saúde.

Além dos impostos, a classe média sentiu o aumento dos preços, acima da inflação, da saúde e da educação privadas. Se, por acaso, fosse recompensada por boas escolas e hospitais, certamente teria menos a reclamar; afinal, o dinheiro estaria voltando ao bolso.

Há também uma espécie de luto. Houve um momento, e não está muito distante, em que a classe média descobriu literalmente o mundo. Foram os períodos gloriosos do Plano Real, mantidos artificialmente (depois vimos o tamanho da conta), quando se podia ir a Nova York ou a Miami com o bolso cheio de moeda forte. Os supermercados empanturravam-se de produtos importados.

Passado o fugaz gosto do paraíso do consumo do Real, veio tudo junto: inflação e desemprego. Sentiu-se ainda mais o peso da carga tributária, que não parava de crescer na era FHC. Essa decepção ajudou a eleger Lula, desgastando o PSDB -e, agora, volta-se contra o PT.

Em pleno luto da classe média, Marta Suplicy, por exemplo, lançou uma série de taxas, dizendo que esse dinheiro iria basicamente para os pobres. Essa, entre outras razões, explica o desgaste da prefeita de uma cidade em que impera a classe média. Basta lembrar que temos aqui quase 11 milhões de habitantes e 5,4 milhões de automóveis registrados.

Não é só. Esse segmento está cada vez mais escolarizado. Portanto tem uma expectativa crescente de retorno desse investimento pessoal. O retorno, porém, são os baixos salários ou o desemprego. Mesmo quando o indivíduo, com o diploma de faculdade debaixo do braço, encontra uma vaga, muitas vezes nada ou pouco tem a ver com o que estudou.

Já preocupado com a sua reeleição, Lula quer saber o que dizer agora para conversar com a classe média, formadora de opinião. Não vai conseguir melhorar rapidamente os serviços públicos. Só lhe sobra assegurar o crescimento econômico, gerando empregos, e diminuir os impostos, reduzindo as despesas das famílias.
Do contrário, é melhor ir confiando no voto dos excluídos, mais sensíveis a ações sociais do tipo Bolsa-Família. Eleita com amplo apoio da classe média, Marta Suplicy tentou neste ano esse discurso e, como se sabe, não obteve sucesso.

Para a sorte dos poderosos, o Brasil ainda não é São Paulo. Nem a classe média, mais atenta. Duro mesmo para quem está no poder vai ser o dia em que cada contribuinte souber contar quantos dias trabalha para os governantes, que quase nunca usam com eficiência, mesmo para os mais pobres, seu dinheiro.

Se acham que a classe média está irritada, ainda não viram nada: afinal, fazer a conta de quantos dias trabalhados significa o imposto arrecadado pode exigir muitos anos de aprendizado de cidadania, mas muito poucos de escolaridade.

PS - Uma das poucas coisas boas da crise da classe média é a mudança de paisagem nas escolas públicas. Para lá, estão rumando alunos que já não conseguem arcar com as mensalidades. A tradução disso é mais pressão nos governos e nas sociedades para melhorar a educação pública.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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