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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
15/01/2007
O mar e o buraco

Enquanto SP se deteriorou tanto em tão pouco tempo, Barcelona se reinventou e, de quebra, redescobriu o mar


A prefeitura de Barcelona inventou um jeito simples para diminuir a dificuldade de obter emprego na cidade. É espécie de versão espanhola de um Poupatempo, destinado, porém, ao trabalho.

Um grupo estuda diariamente as tendências do mercado de trabalho e monta uma lista de oportunidades. A partir desse mapeamento, faz-se relação de todos os cursos existentes, virtuais ou presenciais, capazes de preparar o candidato à vaga. Se, por acaso, não houver o curso, entidades públicas ou particulares são estimuladas a criá-lo.

Ao procurarem o programa, batizado de "Barcelona Ativa", os indivíduos sabem onde estão os empregos e como se preparar para obtê-los. Uma das demandas não preenchidas, por exemplo, é a de coordenador de debates por internet.

Por essa e mais uma imensa galeria de engenhosas soluções, senti-me, caminhando pelas ruas e vielas medievais de Barcelona, neste início do ano, como se estivesse dentro de um laboratório ao ar livre -raras vezes se encontra, nessas proporções, uma comunidade tão inventiva.

Até o fim dos anos 80, Barcelona era conhecida como decadente, em estado de deterioração, sufocada por uma densidade populacional que só perdia para Calcutá, na Índia. Dizia-se que era uma cidade "cinza". O estrago fora provocado, em larga medida, pela antipatia pessoal do ditador Franco à combativa região da Catalunha, no geral, e a Barcelona, sua capital, em particular.

O encanto de Barcelona estava no passado, localizado nos monumentos e nos notáveis artistas e arquitetos, como Picasso, Dalí, Gaudí e Tàpies, que nascerem ou viveram por lá. Sua economia dependia de uma estrutura industrial envelhecida. Pouco se aproveitava de sua vocação turística, o que se verificava pela baixa ocupação dos hotéis.

Vi agora as ruas coloridas, empanturradas de europeus, em sua maioria jovens. Os hotéis, restaurantes, bares, museus, cafés, salas de concerto estavam cheios. É apenas a ponta mais aparente de uma intervenção muito mais profunda.

Conectaram-se os diversos bairros da cidade, privilegiando o pedestre: alargaram as calçadas, fecharam ou reduziram o acesso de automóveis pelas ruas. Demoliram prédios deteriorados e, em seu lugar, criaram pequenas praças, todas com alguma elegante escultura. No mais bairro pobre, encravaram um museu de arte contemporânea, cuja frente serve como pista de skate.

O marco da renovação foram as Olimpíadas de 1992, quando se lançou uma operação numa imensa faixa costeira, ocupada por armazéns velhos, terrenos vazios ou fábricas deterioradas. A cidade redescobriu o mar, ganhando um gigantesco passeio público e, de quebra, praias.

Além da questão urbana, os prefeitos se preocuparam em posicionar a cidade para o futuro e arquitetaram um parque de tecnologia da informação, além de uma incubadora de empresas sofisticadas, misturando universidade, centros de pesquisa e empresas. Ergueram um centro de convenções sem igual naquela parte da Europa.
Barcelona quer tirar proveito de sua posição geográfica para ampliar os negócios com as cidades mediterrâneas. Isso implicou todo um plano de transportes; começa neste ano a funcionar o trem de alta velocidade.

O resultado: o desemprego em Barcelona é o menor entre as grandes cidades da Espanha, e o setor de serviços ganha cada vez mais força, superando as velhas indústrias. Seu nível educacional não pára de subir.

Conseguiram combinar o provinciano ato de caminhar ou ficar conversando numa pracinha com a mais avançada pesquisa científica para o mundo virtualizado e uma inserção global de negócios.

Além da sorte de ter uma concentração de dirigentes talentosos e com visão de longo prazo, ajudados pela expansão da economia espanhola, Barcelona foi beneficiada pelo fato de que, no geral, um prefeito complementava o que seu antecessor fazia. Além disso, havia um pacto com a sociedade, inclusive com os meios de comunicação, em torno de uma agenda mínima para a recuperação da cidade.
Mais do que a óbvia inteligência urbana de seus governantes -jamais ousariam fazer de sua cidade apenas um trampolim político como ocorre tanto aqui no Brasil-, aprendemos até onde se pode ir quando as pessoas fazem de suas comunidades um grande caso de amor.

São capazes até de redescobrir o mar.

PS - Saí de lá com a visão reforçada de que São Paulo, que voltou a viver um inferno com o desabamento do metrô, deteriorou-se tanto em tão pouco tempo, atacada por marginais, pisoteada pelos políticos, massacrada por especuladores imobiliários, porque, além do dinheiro escasso e do baixo crescimento econômico, faltou o mais elementar respeito de seus habitantes. Por isso, eles conseguem ver o mar, e nós estamos no buraco.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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