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REFLEXÃO


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Folha de S.Paulo
15/05/2006
Chico Buarque e a detestável São Paulo

Ian Mayes teve de se curvar levemente para entrar pela apertada porta de um barraco de madeira, com aproximadamente 20 metros quadrados, na favela Coliseu, em São Paulo. A precária iluminação deixava o ambiente escurecido. Ao fundo, uma cama de solteiro espremida entre livros e discos ocupando, de cima a baixo, as paredes, tudo cuidadosamente organizado.

Ombudsman do jornal inglês "The Guardian", um dos mais prestigiados do mundo, Mayes, de 72 anos, saiu daquele cubículo dizendo que raramente tinha passado por semelhante surpresa profissional. "Inacreditável", repetia impressionado com José Pedro Gouveia (Zezinho), um migrante paraibano, catador de lixo reciclável.

Em meio aos livros, o jornalista encontrou uma coleção rara de discos dos Beatles. "Isso aqui no meu país iria ser disputado a peso de ouro", disse, olhando e apalpando, perplexo, cada disco de vinil. Zezinho sabia o valor do que tinha em mãos: "Já chegaram a me oferecer muito dinheiro e não aceitei".

Os discos fazem parte do acervo daquele barraco, transformado em biblioteca para a favela de 300 famílias. Quando tem dinheiro para comprar tinta, Zezinho desenha as paredes de sua comunidade com os grafites para deixar o lugar mais bonito. "Amo esse lugar", orgulha-se, tentando se fazer entender pelo jornalista.

Na quinta-feira passada, o tesouro dos Beatles e Zezinho fizeram parte do trajeto de Mayes por experiências em regiões deterioradas de São Paulo. Numa escola pública de Heliópolis, ele viu crianças de oito anos estudando um girassol pintado por Van Gogh. Num beco, observou como pichadores tentam redescobrir a sofisticação de suas letras. Depois dessas visitas, bem longe do hotel cinco estrelas em que estava hospedado, o jornalista disse ter ficado impressionado como, em meio a tanta violência, feiúra e pobreza, uma comunidade consegue gerar tanta energia criativa.

Acostumado a cidades cosmopolitas, Mayes, por ser estrangeiro, talvez tenha mais facilidade de ver novos ângulos de uma cidade em outro país do que os locais. Um número crescente de jornalistas de fora estão escrevendo reportagens sobre como, ao lado da miséria, prospera a efervescência paulistana.

A visão que impera, porém, é a exposta por Chico Buarque, em recente entrevista: "São Paulo é detestável, um desastre, a cidade que não deu certo". Sem bairrismo, até porque ele é meio paulistano, referia-se à arquitetura e ao urbanismo -e, vamos reconhecer, Chico tem boa dose de razão.

Mas, para quem está disposto, como Ian Mayes, a descobrir tesouros, a cidade não é só caos e, nesta semana, nunca terá sido tão visível sua energia.

No próximo sábado, começa a "Virada Cultural". São 400 eventos ocorrendo por 24 horas seguidas, com os mais diferentes tipos de sons, ritmos, sotaques, unificando toda a cidade pela música, dança, poesia, exposições, cinema, teatro e literatura. Vai-se da ópera ao hip hop até o forró. Toda a região central se converterá num gigantesco bulevar das artes. Esse evento apenas reflete o que vem ocorrendo por toda a São Paulo, quase com se fosse um movimento de resistência. Invariavelmente, formam-se filas de crianças, jovens, adultos e idosos, para entrar no recém-inaugurado Museu da Língua Portuguesa, onde se reverencia o poder da palavra. Aquele entorno, mais conhecido como "cracolândia", oferece cada vez mais exposições da Pinacoteca, da Estação Pinacoteca, do Ateliê Amarelo ou concertos na Estação Júlio Prestes (sede da Orquestra Sinfônica), além dos ensaios da Universidade Livre de Música (Tom Jobim).

Não é pouca coisa um lugar só dominado pelo crack passar a ter concertos e exposições -e, num museu, reverenciar a palavra. O Pátio do Colégio, onde a cidade nasceu, planeja ter periodicamente concertos eruditos. A catedral da Sé está em acertos para oferecer em todos os dias do ano alguma atividade musical. A poucos metros dali, orquestras internacionais se apresentam, no Colégio São Bento, em um auditório recém-reformado.

Nas imediações, a praça Roosevelt, antes só ocupada por marginais, travestis e mendigos, está virando um pólo de teatro. Subindo pela rua Augusta, ponto de prostíbulos, surgiu o Vegas, um clube que atrai gente descolada, misturando classes sociais. No próximo mês, seus proprietários vão alugar uma série de casas, usadas para prostituição, para fazer um festival internacional de DJs, com os mais diversos gêneros musicais.

Os CEUs oferecem alternativas culturais para a periferia como nunca se ofereceu; nem estou contando aqui a programação, em geral de altíssimo nível, do Sesc. A decisão de abrir as escolas estaduais e municipais nos finais de semana, criar período integral e oferecer atividades extracurriculares injeta o prazer pelas artes em centenas de milhares de estudantes. Há projetos públicos de música como o Guri que atingem uma rede imensa de escolas, inclusive internos da Febem. Professores da rede pública vêm sendo treinados para fazer dos espaços culturais uma extensão da sala de aula.

Só assim é possível aprender como, ao lado da cidade urbanística e socialmente detestável, prospera uma cidade cada vez mais interessante e adorável.

P.S. - Para entender e gostar de São Paulo é preciso vê-la e ouvi-la com atenção várias vezes, à procura dos tesouros escondidos. É exatamente o que é necessário fazer para gostar de "Carioca", esse mais recente e maravilhoso trabalho de Chico Buarque.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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