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Ian Mayes teve de se curvar levemente
para entrar pela apertada porta de um barraco de madeira,
com aproximadamente 20 metros quadrados, na favela Coliseu,
em São Paulo. A precária iluminação
deixava o ambiente escurecido. Ao fundo, uma cama de solteiro
espremida entre livros e discos ocupando, de cima a baixo,
as paredes, tudo cuidadosamente organizado.
Ombudsman do jornal inglês "The Guardian",
um dos mais prestigiados do mundo, Mayes, de 72 anos, saiu
daquele cubículo dizendo que raramente tinha passado
por semelhante surpresa profissional. "Inacreditável",
repetia impressionado com José Pedro Gouveia (Zezinho),
um migrante paraibano, catador de lixo reciclável.
Em meio aos livros, o jornalista encontrou uma coleção
rara de discos dos Beatles. "Isso aqui no meu país
iria ser disputado a peso de ouro", disse, olhando e
apalpando, perplexo, cada disco de vinil. Zezinho sabia o
valor do que tinha em mãos: "Já chegaram
a me oferecer muito dinheiro e não aceitei".
Os discos fazem parte do acervo daquele barraco, transformado
em biblioteca para a favela de 300 famílias. Quando
tem dinheiro para comprar tinta, Zezinho desenha as paredes
de sua comunidade com os grafites para deixar o lugar mais
bonito. "Amo esse lugar", orgulha-se, tentando se
fazer entender pelo jornalista.
Na quinta-feira passada, o tesouro dos Beatles e Zezinho fizeram
parte do trajeto de Mayes por experiências em regiões
deterioradas de São Paulo. Numa escola pública
de Heliópolis, ele viu crianças de oito anos
estudando um girassol pintado por Van Gogh. Num beco, observou
como pichadores tentam redescobrir a sofisticação
de suas letras. Depois dessas visitas, bem longe do hotel
cinco estrelas em que estava hospedado, o jornalista disse
ter ficado impressionado como, em meio a tanta violência,
feiúra e pobreza, uma comunidade consegue gerar tanta
energia criativa.
Acostumado a cidades cosmopolitas, Mayes, por ser estrangeiro,
talvez tenha mais facilidade de ver novos ângulos de
uma cidade em outro país do que os locais. Um número
crescente de jornalistas de fora estão escrevendo reportagens
sobre como, ao lado da miséria, prospera a efervescência
paulistana.
A visão que impera, porém, é a exposta
por Chico Buarque, em recente entrevista: "São
Paulo é detestável, um desastre, a cidade que
não deu certo". Sem bairrismo, até porque
ele é meio paulistano, referia-se à arquitetura
e ao urbanismo -e, vamos reconhecer, Chico tem boa dose de
razão.
Mas, para quem está disposto, como Ian Mayes, a descobrir
tesouros, a cidade não é só caos e, nesta
semana, nunca terá sido tão visível sua
energia.
No próximo sábado, começa a "Virada
Cultural". São 400 eventos ocorrendo por 24 horas
seguidas, com os mais diferentes tipos de sons, ritmos, sotaques,
unificando toda a cidade pela música, dança,
poesia, exposições, cinema, teatro e literatura.
Vai-se da ópera ao hip hop até o forró.
Toda a região central se converterá num gigantesco
bulevar das artes. Esse evento apenas reflete o que vem ocorrendo
por toda a São Paulo, quase com se fosse um movimento
de resistência. Invariavelmente, formam-se filas de
crianças, jovens, adultos e idosos, para entrar no
recém-inaugurado Museu da Língua Portuguesa,
onde se reverencia o poder da palavra. Aquele entorno, mais
conhecido como "cracolândia", oferece cada
vez mais exposições da Pinacoteca, da Estação
Pinacoteca, do Ateliê Amarelo ou concertos na Estação
Júlio Prestes (sede da Orquestra Sinfônica),
além dos ensaios da Universidade Livre de Música
(Tom Jobim).
Não é pouca coisa um lugar só dominado
pelo crack passar a ter concertos e exposições
-e, num museu, reverenciar a palavra. O Pátio do Colégio,
onde a cidade nasceu, planeja ter periodicamente concertos
eruditos. A catedral da Sé está em acertos para
oferecer em todos os dias do ano alguma atividade musical.
A poucos metros dali, orquestras internacionais se apresentam,
no Colégio São Bento, em um auditório
recém-reformado.
Nas imediações, a praça Roosevelt, antes
só ocupada por marginais, travestis e mendigos, está
virando um pólo de teatro. Subindo pela rua Augusta,
ponto de prostíbulos, surgiu o Vegas, um clube que
atrai gente descolada, misturando classes sociais. No próximo
mês, seus proprietários vão alugar uma
série de casas, usadas para prostituição,
para fazer um festival internacional de DJs, com os mais diversos
gêneros musicais.
Os CEUs oferecem alternativas culturais para a periferia como
nunca se ofereceu; nem estou contando aqui a programação,
em geral de altíssimo nível, do Sesc. A decisão
de abrir as escolas estaduais e municipais nos finais de semana,
criar período integral e oferecer atividades extracurriculares
injeta o prazer pelas artes em centenas de milhares de estudantes.
Há projetos públicos de música como o
Guri que atingem uma rede imensa de escolas, inclusive internos
da Febem. Professores da rede pública vêm sendo
treinados para fazer dos espaços culturais uma extensão
da sala de aula.
Só assim é possível aprender como, ao
lado da cidade urbanística e socialmente detestável,
prospera uma cidade cada vez mais interessante e adorável.
P.S. - Para entender e gostar de São Paulo é
preciso vê-la e ouvi-la com atenção várias
vezes, à procura dos tesouros escondidos. É
exatamente o que é necessário fazer para gostar
de "Carioca", esse mais recente e maravilhoso trabalho
de Chico Buarque.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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