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REFLEXÃO

A maioridade penal deveria ser reduzida para 16 anos?
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folha de s.paulo
17 /11/2003

Estamos nos iludindo. Infelizmente


Confesso que, ao tomar conhecimento dos detalhes da morte do casal de namorados Liana Friedenbach e Felipe Caffé, fui provocado pela minha porção selvagem -ou simplesmente pela minha porção pai-, disposta a fazer vagarosamente justiça com as próprias mãos.

Admito ao leitor que gostaria de me convencer de que, diminuindo a maioridade penal, o que só depende da mudança de uma lei, eu dormiria melhor enquanto meus filhos, divertindo-se nas baladas, ainda não chegassem em casa.

Acirrado na semana passada pelo assassinato do casal de namorados, o debate sobre o endurecimento das leis para combater a violência é um jeito que encontramos para nos iludir com uma saída fácil e rápida, mas ineficaz.

Na semana passada, vimos como personalidades sérias, sinceramente preocupadas em construir uma sociedade civilizada, se renderam à comoção. Demonstraram publicamente simpatia pela idéia de jogar adolescentes numa prisão de adultos.

É reflexo da angústia geral. Na sexta-feira, uma enquete promovida pela Folha Online entrevistou 25 mil pessoas e mostrou que 98% delas vêem na redução da maioridade penal uma boa maneira de combater o crime.

O raciocínio é simples e, vamos reconhecer, sedutor: os jovens cometem os crimes porque se imaginam impunes. Se souberem que, flagrados, ficarão metidos em uma jaula com adultos, pensarão duas vezes.

Quem se dispõe a argumentar sobre a impropriedade dessas soluções se vê acuado, apontado como defensor de bandido, quase um cúmplice. O que se deve perguntar é o seguinte: enjaular os jovens entre adultos talvez aplaque a vontade de vingança, mas vai nos deixar mais tranquilos?

Como não existe pena de morte nem prisão perpétua no Brasil, esses jovens estarão, mais cedo ou mais tarde, de volta às ruas, ainda mais ameaçadores.

O problema, no Brasil, não é a falta de leis, mas a desobediência a elas. Justamente nisso, na sensação de impunidade, está um dos motores da barbárie.
Centenas de milhares de criminosos já condenados estão fora das cadeias. Mais centenas de milhares nem chegam a ser processados devido à inépcia policial. Inquéritos são ruins e esfarelam-se, inconsistentes, quando chegam ao Judiciário.

Diminuiu o número de assaltos a bancos e de sequestros pela simples razão de que, diante da ofensiva policial, o delinquente passou a fazer melhor o cálculo de custo-benefício. Certamente, se todos os crimes tivessem desfechos tão rápidos como o que se viu no caso do casal de namorados assassinado, estudantes de uma tradicional escola de São Paulo, a percepção geral de impunidade seria diferente.

Quando se criaram as novas leis de privação de liberdade para os jovens, imaginou-se, entre outras coisas, que o melhor e mais óbvio seria investir na recuperação. Os adolescentes são seres em formação e necessitam de um tratamento diferenciado. Quem ganharia com indivíduos que, depois de cumprirem a pena, ficassem ainda mais enraivecidos?

Privar da liberdade seria não só um tempo de punição mas um esforço para que, devidamente educado, com base nas especificidades psicológicas da infância e da adolescência, o jovem não voltasse a ameaçar a sociedade.

No entanto, as leis não foram cumpridas ou foram descuidadas: são ainda exceções os locais que conseguem oferecer as chamadas medidas socioeducativas de qualidade.

Gasta-se muito dinheiro -em média, R$ 4.000 por mês- para cada interno em uma Febem e os resultados são ruins. Misturam-se irresponsavelmente crianças e adolescentes das mais diversas faixas etárias, criando uma escola do crime.

É muito mais cômodo satisfazer a opinião pública, apavorada, propondo a redução da maioria penal do que tratar da complexidade de reintegrar um jovem. Esse é um processo que envolve reengenharia da Febem, melhoria da educação pública, policiamento comunitário, planejamento familiar, ações de saúde pública contra abuso de álcool e drogas, trabalho com as famílias, investimentos em lazer e cultura na periferia, programas de renda mínima acoplados à profissionalização e geração de atividades econômicas para jovens.

Em várias partes do mundo há experiências que mostram ser possível recuperar os jovens, desenvolvendo neles a sensação de pertencimento. Isso não é simples -demanda paciência, profissionais qualificados, espaços estimulantes e saudáveis, envolvimento comunitário-, mas é possível.

As melhores experiências são aquelas em que entidades comunitárias assumem tarefas educativas nas instituições, como, aliás, esparsamente já ocorre no Brasil.
Isso, na minha opinião, é ser duro de verdade contra o crime.

Compreensivelmente, a população quer, até para aplacar sua angústia, respostas rápidas. Exige, com razão, eficiência policial, celeridade da Justiça. Está disposta, portanto, a se iludir.

O problema é que, para combatermos a violência, corremos o risco de nos convertermos em selvagens, estimulando o Estado a ser instrumento de vingança ou sustentando grupos de extermínio -e, aí, os selvagens terão vencido moralmente.
Não teremos conseguido civilizá-los, mas eles terão conseguido nos deixar um pouco selvagens.

PS - Sobre o adolescente que matou Liana, a lei permite que, depois de cumprir a pena na Febem, ele seja levado a um manicômio judiciário. Gente assim não pode mesmo ficar livre, ameaçando a sociedade.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, aos domingos.

   
 
 
 

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