REFLEXÃO


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folha de s.paulo
18/06/2007
O Brasil do dia seguinte

Jovens que apostam em carreira e estudos já vêm com anticoncepcional na cabeça. Temos aí o Brasil do amanhã

Professora da Universidadede São Paulo, a ginecologista Albertina Duarte Takiuti notou, em seu consultório, o crescente número de adolescentes que usavam a chamada pílula do dia seguinte para evitar a gravidez.

A amostra era, porém, tendenciosa: suas pacientes particulares são de famílias de maior poder aquisitivo. Surpreendeu-se, então, ao pesquisar como esse medicamento, composto de uma altíssima dose de hormônio (equivalente a 12 pílulas anticoncepcionais), vem sendo consumido entre as mais pobres.

Numa pesquisa ainda inédita, foram entrevistadas 120 jovens com vida sexual ativa, todas de baixa renda: 95% delas conheciam a pílula do dia seguinte e 36% já a usavam regularmente, número bem superior aos 20% registrados em estudo semelhante realizado em 2004.

"Estamos no caminho de transformar esse recurso em algo rotineiro", aposta Albertina Duarte, criadora da Casa do Adolescente, um dos mais importantes programas médicos brasileiros, reconhecido mundialmente, de educação sexual para jovens de 10 a 19 anos.

Sua visão baseia-se no fato de que os governos federal e estadual decidiram aumentar a distribuição dessa pílula nas redes de saúde, como último recurso antes do aborto.

Dependendo do ângulo em que se veja -evitar a gravidez precoce e, conseqüentemente, o aborto-, é uma boa notícia. Por outro lado, revela que muitas adolescentes estão transando sem camisinha, o que é um fato preocupante.

A imensa maioria dos brasileiros pode até suspeitar, mas não conhece o tamanho da tragédia da falta de planejamento familiar -e, daí, a importância da pílula do dia seguinte. De acordo com os últimos dados oficiais disponíveis (2004), a cada hora, três meninas de idades entre 10 e 14 anos se tornam mães.

Se elevarmos essa faixa etária até os 19 anos, há o registro de uma nova mãe adolescente por minuto. Repito: minuto. Isso quer dizer que, desde que você começou a ler esta coluna até agora, pelo menos uma menina já teve um filho. Vamos traduzir um pouco mais: são 661.290 mães adolescentes todos os anos.
Vamos adiante: 44 mil adolescentes são internadas por ano por causa do aborto. Calcula-se que mais 300 mil jovens com menos de 19 anos tenham feito aborto, mas não tenham tido problemas médicos.

Somando-se tudo, gira em torno de 1 milhão o número de garotas que engravidam anualmente, tornadas mães precoces ou obrigadas a abortar. Registre-se também que são 180 mil as mulheres acima de 19 anos internadas na rede pública por problemas da interrupção de gravidez. Esse é o Brasil do dia seguinte.

Já sabemos que a gravidez precoce é uma das principais causas de evasão escolar e, segundo uma série de estudos científicos, uma das causas da violência -filhos indesejados, rejeitados, descuidados são um óbvio estímulo à marginalidade.

O tema do aborto foi lançado (corajosamente, diga-se) pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Causou polêmica (falou-se em plebiscito), até que, aos poucos, foi saindo de cena -e, enfim, foi desautorizado por Lula.

A pista da pesquisa conduzida pela professora Albertina é a seguinte: por mais indesejável que seja, a pílula do dia seguinte está caindo no gosto das adolescentes e, se disseminada maciçamente pela rede pública, conectada às escolas, a tragédia da gravidez precoce e do aborto poderá ser menor.

Fica ainda a tragédia das doenças sexualmente transmissíveis -e, aí, a pílula do dia seguinte corre o risco de virar uma ameaça.

"A jovem pode se sentir tentada a não se proteger, imaginando que se valerá desse recurso final", afirma a ginecologista com base em entrevistas feitas com adolescentes.

O que já sabe é que o melhor caminho é o mais difícil -jovens com auto-estima elevada, apostando em carreira e estudos, já vêm com anticoncepcional na cabeça. Temos aí não o Brasil do dia seguinte, mas o Brasil do amanhã.

PS - Para evitar o "Brasil do dia seguinte", vêm sendo realizados projetos experimentais que usam os mais diversos recursos com garotos e garotas. Essas experiências deveriam ser disseminadas rapidamente em toda a rede pública. Coloquei no site alguns exemplos.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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