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REFLEXÃO


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folha de S.paulo
21/06/2004
Mãe de UTI

Sofia nasceu às 19h57, em 24 de abril de 2001, e foi direto para a UTI. "Tive vontade de me levantar daquela maca com a barriga aberta e ir atrás dela", recorda-se a mãe, Maria Miele, uma terapeuta corporal especialista em massagem chinesa.

No dia seguinte, em seu quarto de hospital, Maria, confiante, se recompunha do trauma. "Pensava secretamente que tudo não passava de um mal-entendido. Minha genética familiar era tão forte e perfeita que, obviamente, minha filha sairia dessa muito bem e rápido."

"Eu não sabia de nenhuma previsão futura, nem sabia quando seriam as cirurgias. Não sabia como seria a vida dela, não seria sabia qual dos tantos sentimentos contidos dentro de mim seria mais útil para nós duas. E sem saber que caminho tomar, optei pelo único sentimento possível e que nunca seria demais sentir: o amor incondicional."

A primeira cirurgia ocorreu quando a criança tinha dez dias de vida. "O tempo não passava, meu estômago estava enrijecido. Enquanto eu e meu marido ( Luís) caminhávamos pelas ruas próximas da maternidade, eu via as pessoas almoçando, sorrindo, caminhando com pressa."

Em dezembro, véspera de natal, Sofia ainda estava na UTI, diagnosticada com insuficiência renal, infeção generalizada e falência múltipla dos órgãos. Talvez, imaginavam os médicos, não sobrevivesse até o reveillon. Sobreviveu. "Cruzamos a porta da UTI e passamos toda a noite com ela no meu colo. Nós duas estávamos vestidas de branco."

"UTI é o lugar mais horrível para se estar. É um lugar que testa violentamente os limites humanos daqueles que a habitam diariamente, minuto a minuto. Ali são testados mães, pais, médicos, mesmo os mais experientes."

" É muito difícil ter um filho na UTI. São momentos solitários, nos quais você tem de aprender a lidar com seus limites, sua impotência, seu egoísmo, além de tentar determinar sinceramente até onde você será capaz de ir."

"É conviver com o medo 24 horas por dia. É sentir o coração disparando cada vez que você chega e só senti-lo bater ritmado depois de pousar os olhos em seu bebê e ter certeza de que está tudo bem. Medo da perda, medo da piora, medo do futuro incerto, medo do presente. Medo da própria capacidade de suportar as notícias."

Apesar de todos os prognósticos, Sofia melhorou - e Maria se sentiu livre dos medos. "Nem estamos acreditando", disse uma das médicas a Maria. "Voei para a UTI, que estava em festa. Às 15h30, de 9 de maio de 2002, um ano e um mês do nascimento, enfim a chegada em casa. Enquanto entrava pela porta, agarrada à criança, chorava e repetia: " Não acredito, não acredito."

"Eu me sentia mãe de verdade após mais de uma ano de espera. Poder acordar no meio da noite e ir beijá-la, dar seu banho dentro do quarto, e não mais na UTI, cantar para ela segurando-a em meus braços."

No início de julho, porém, Sofia já estava de volta ao hospital e, mais uma vez, na UTI. "Voltei para casa arrasada, parecia que eu carregava um piano nas costas".

No dia 30 daquele, o hospital chamou a família. Sofia tinha piorado. "Entrei tremendo na UTI."

Acompanhada de Luís, ela colocou a filha entre os braços. "Toda a equipe se retirou num ato de respeito. Foram para trás de um vidro onde ficava o monitor central."

"Meu marido se levantou e saiu. Ela fria, nos meus braços, não estava mais lá, eu simplesmente não a sentia. Como um pássaro leve, tinha voado, sem barulho, sem alarde. Passou para algum lugar, e a porta se fechou, me deixando aqui sozinha."

P.S- O que você, leitor, acaba ler estava previsto para nunca ser lido. Para enfrentar a dor, Maria Miele escreveu sua experiência de 13 meses em três hospitais em São Paulo (Incor, São Luiz e Samaritano). Esse misto de diário com reportagem era para ficar trancado numa gaveta. Mas ela aceitou publicar sua história, intitulada "Mãe de UIT", a ser lançada pela editora Terceiro Nome no próximo semestre, por ter descoberto que não havia um livro para ajudar mães que vivessem semelhante situação. Neste mês, Maria começou a percorrer hospitais para formar grupos de mãos cujos filhos estão em UTI e não têm, na maioria das vezes, com quem compartilhar sua dor e solidão. "As dores e saudade não diminuíram, nem a memória apagou tudo o que eu presenciei, mas com o passar do tempo, comecei aprender a lidar a melhor com tudo isso; o passado não muda, mas, de certa forma, tudo acaba mudando com tempo", diz Maria.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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