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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
22/05/2005
Diploma de lixo

O crescente número de reclamações de erros em diagnósticos e tratamentos registrado pelos Conselhos Regionais de Medicina deve-se em parte à formação precária dos estudantes que saem das faculdades.

Essa é a convicção do diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Giovanni Guido Cerri, presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas. Na sua estimativa, de cada 100 formados, apenas 50 têm as qualificações necessárias para exercer a profissão. "Estamos vivendo momentos difíceis", diagnostica.

A razão dessa deficiência é, segundo ele, a precariedade de muitos dos cursos de medicina abertos nos últimos anos. Essa também é a opinião de um dos cirurgiões brasileiros mais respeitados do país. "Chegamos a uma situação terrível", afirma Adib Jatene, ex-ministro da Saúde.

Se o diagnóstico é aceito, o tratamento provoca divergências.

Para Cerri, submeter os alunos a um teste semelhante ao da Ordem dos Advogados do Brasil, destinado aos graduados em direito, seria "quebrar o termômetro para combater a febre". O certo seria coibir o funcionamento das faculdades.

Já o professor José Aristodemo Pinotti discorda disso por considerar uma "leviandade" deixar pessoas despreparadas cuidarem da saúde dos indivíduos. Sugere que o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, tenha um exame em cada Estado. "Se mudar de Estado, o médico tem de submeter-se a um novo exame."

Divergências à parte, a qualidade dos alunos que saem dos cursos de medicina é um debate previsível se forem levados em conta os resultados, divulgados na semana passada, da prova da OAB de São Paulo: quase 90% dos formados que a realizaram foram reprovados (e do resultado desse exame depende a permissão para o exercício da profissão de advogado), ou seja, o diploma deles pode ir para o lixo.

Daí surge a questão mais do que óbvia: como se têm saído os alunos dos demais cursos universitários? E, em especial, aqueles para quem um erro pode significar a vida de alguém?

Se, em cursos como medicina, em que o estudante passa seis anos em período integral na faculdade, além de mais dois anos fazendo residência, já temos tamanha dose de precariedade no ensino, imagine-se nos demais cursos.

Culpar apenas as faculdades de "fundo de quintal" é empobrecer o debate, atingindo o alvo mais fácil.

É impossível entender essa questão olhando apenas para quem sai da faculdade. É preciso observar quem entra. Só assim podemos perceber a tragédia educacional brasileira.

A tragédia vem, sem exagero, do berço. Nossos estudantes não foram bem alfabetizados e, por isso, nunca adquiriram o hábito da leitura. Essa é uma das razões de se manterem intelectualmente capengas pela vida afora: não são poucos os que não compreendem o que lêem e têm dificuldades de expressão. Todas as disciplinas, inclusive a física, a química ou a matemática, exigem as habilidades de leitura e escrita.

O que estou dizendo está em números. Os dados oficiais mostram o seguinte: 94,66% dos alunos da terceira série do ensino médio (você leu corretamente, caro leitor, 94,66%) demonstram um nível de leitura inferior ao esperado.
Existem aqui gradações de analfabetismo: há desde os que não sabem ler até os que lêem, mas entendem pouco. Daqueles 94,66% do ensino médio, 42% têm um desempenho considerado crítico ou muito crítico.

As crianças vêem as deficiências se somarem em sua vida até a adolescência. Não têm estímulo de leitura na escola (sabemos que uma minoria dos professores gosta de ler), são poucas as que desfrutam de creches de boa qualidade e de uma educação infantil de bom nível. Na fase vital da alfabetização, é comum que estudem em salas lotadas e tenham professores pouco qualificados. Tome-se o exemplo de São Paulo, a cidade mais rica do país, onde o aluno fica em sala de aula, em média, durante duas horas e meia por dia. Muitas escolas chegam a oferecer até três turnos de dia.

Não existe mais reprovação (o que é correto), mas quase nunca são oferecidos programas de reforço consistentes. O que se imagina que possa resultar desse processo? Nada mais, nada menos que o expressivo fracasso no teste da OAB.
O mais perverso disso tudo é que esses bacharéis reprovados no exame da Ordem, ainda que paradoxalmente, são heróis. Sobreviveram à "seleção natural" da escola pública, concluíram o ensino médio -provavelmente à noite, afinal, trabalham de dia- e pagaram mensalidades durante vários anos para estudar numa faculdade particular.

O que acontece na OAB, portanto, não deveria espantar. É apenas a conseqüência de uma sucessão de omissões das famílias, da comunidade e do poder público, todos sócios numa verdadeira tragédia educacional.

PS - Em seu mais recente filme, intitulado "Quanto Vale ou É por Quilo?", Sérgio Bianchi investe contra as organizações não-governamentais, acusando-as de serem desonestas e de viverem da miséria. Pode-se acusar a obra de leviana devido à generalização. Pode-se também acusar seu autor de estar desinformado por não perceber como grandes conquistas -queda da mortalidade infantil, preservação do ambiente ou direitos das mulheres e dos trabalhadores, entre outras- se devem, em parte, a articulações comunitárias que acabaram por influenciar os governos. Apesar disso, o filme tem um lado positivo: afinal, mostra que, no Brasil, há empresas que fabricam cigarro e, ainda assim, conseguem ganhar selos de responsabilidade social, o que é sinal de que existem células cancerígenas no terceiro setor. Na sua leviandade, o filme tem o mérito de provocar debates mais qualificados sobre as novas estruturas de poder.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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