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REFLEXÃO


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folha de s.pailo
22/11/2004
O maravilhoso Brasil de Maria das Graças

Para quebrar o silêncio, perguntei ao motorista que me levava a Santa Rita do Sapucaí, sul de Minas, quais eram os problemas daquela cidade, em que ele morava. "Ah, doutor, lá tem um problema danado de falta de trabalhador." Como era muito cedo e eu estava sonolento, pensei que não tinha ouvido direito a resposta, que certamente seria "falta de trabalho".

Em instantes, percebi que não era engano. O motorista queixava-se de que Santa Rita não progredia mais porque os empresários não dispunham de mão-de-obra suficiente para ampliar seus negócios.

Aquela pequena cidade de 35 mil habitantes vem investindo, há cinco décadas, no ensino de eletrônica e, depois, telecomunicações. Projetaram-se empresas de alta tecnologia, que demandam trabalhadores mais sofisticados. Uma única empresa, criada em parceira com um grupo asiático, precisava, naquele mês da minha visita, 400 funcionários e encontrava dificuldade de recrutá-los.

Foi naquele cenário bucólico de alta tecnologia que se produziu, por exemplo, a urna eletrônica, admirada mundialmente.

Existem espalhados pelo país centros de inovação, a exemplo do pólo de tecnologia de Santa Rita, que aprenderam a driblar juros altos, carga de tributos pornográfica, burocracia lerda, falta de verbas oficiais. Alguns desses centros remodelam, a partir do conhecimento, comunidades inteiras. É o país longe de Brasília.

Na quinta-feira passada, o país de Brasília estava tomado pelas intrigas do poder, com a queda de Carlos Lessa da direção do BNDES. Falava-se das brigas entre ministros e assessores, alguns deles voltando para casa; falava-se também de uma nova reforma no primeiro escalão do governo. Como pano de fundo, claro, a sucessão presidencial de 2006.

Naquele mesmo dia, ficamos conhecendo a até então anônima Maria das Graças Pomaceno. Vítima de um derrame, submeteu-se a uma experiência com células-tronco conduzida por cientistas e médicos da Universidade Federal de Rio de Janeiro. Vimos como muitos de seus movimentos puderam ser recuperados pelo efeito do transplante das células, que refizeram parte de seu cérebro danificado.

Quem se liga apenas no Brasil oficial deve ter achado que as mudanças no governo eram as notícias mais relevantes do dia, talvez do mês ou do ano. Mas não se comparam em importância, o que é óbvio, ao andar de Maria das Graças, que trouxe atenção mundial à medicina brasileira. Sabe-se da falta de verbas que os cientistas e médicos que conduziram a experiência enfrentaram.

A chance de o país ter um futuro inovador depende mais da capacidade de se disseminarem as ilhas de inovação que fazem Maria das Graças andar ou Santa Rita inventar um jeito de fazer uma eleição melhor do que dos acordos ou desacordos dos gabinetes oficiais. O ímpeto inovador é sufocado justamente pelo peso do poder público, com seus impostos, burocracias e falta de continuidade dos programas.

A crise do petróleo está criando no país uma monumental chance de geração de riquezas -e, de novo, surgem ilhas de inovação. Inventou-se no país um carro capaz de usar vários tipos de combustível. Isso implica a possibilidade de usarmos mais gás, aproveitando de gigantescas reservas recém-descobertas, mais álcool ou até, no futuro, apenas biodiesel. Isso significa ao mesmo tempo empregos, divisas e, para completar, menos poluição.

Já existem ônibus rodando apenas com óleos vegetais (mamona, soja, dendê), cujos motores foram criados em universidades.

Há no pais 460 cidades que se especializaram na produção de determinados produtos e, para continuar se expandido e ganhando mercados, fazem parcerias com o setor público e estimulam a geração de conhecimento. É o que se chama de "arranjos produtivos locais". É assim que muitas cidades, como Franca (calçados), São José dos Campos (aviação) e Nova Friburgo (moda íntima), entram em disputados mercados internacionais.

Em Santa Rita, existe a seguinte química: a prefeitura oferece galpões para incubadoras, entidades empresariais (Sebrae, por exemplo) dão consultorias de gestão e o governo federal, através do Ministério das Comunicações, e o governo estadual apóiam com dinheiro.

Quando o governo está a serviço do empreendedorismo e da inovação, não há possibilidade de erro. É quando ficamos mais para as maravilhas de Maria das Graças do que para intrigas da corte.

PS - Por falar em mundo oficial, estamos assistindo em São Paulo a um devastador processo de paralisação da máquina pública devido à carência de recursos. Falta dinheiro até para as creches. Enquanto isso, o futuro prefeito, José Serra, consegue desviar sua energia para ficar cuidando da direção nacional do PSDB. São Paulo é grande demais e tem muitos problemas para que um prefeito não lhe dedique total atenção.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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