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REFLEXÃO


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Folha de S.Paulo
23 /11/2003

Os seres humanos que viraram linguiça

Parece até uma conspiração para mostrar, numa dimensão inédita, os perigos da delinquência juvenil. Nem superamos ainda a comoção pelo assassinato do casal de namorados, somos tomados de assalto por mais uma selvageria que envolve um adolescente -dessas de filmes de terror inverossímeis.

Na quinta-feira, Leonardo José Pereira morreu, baleado pela polícia, por participar de um dos mais perversos sequestros de que se tem notícia ultimamente.

No prontuário de Leonardo na Febem, está o registro de posse ilegal de arma. Mas ele foi solto e enquadrado na condição de "liberdade assistida": ficaria na rua, longe da prisão, desde que se submetesse a programas oficiais para integrá-lo à sociedade.

Encontrou "assistência" não no poder público, mas numa quadrilha de sequestradores que manteve refém por 53 dias um homem de 81 anos, alimentado a cada dois dias. Joaquim Ferreira Dias, a vítima, não teve o direito nem de usar o banheiro ou de tomar um simples banho, reduzido à condição de animal, vivendo em meio a fezes e urina.

A polícia chegou, na quinta-feira de madrugada, a um bairro da zona sul de São Paulo para libertar o refém, que tinha as mãos presas a um botijão de gás e os pés amarrados. Encontrou e eliminou Leonardo, segurança do cativeiro -que não teve direito à maioridade na vida.

Naquela mesma quinta-feira em que Leonardo morreu, a polícia descobriu que era um adolescente de 15 anos o assassino de uma estudante universitária na zona leste. O adolescente baleou na cabeça a estudante Cristiane Matheus Pernias, de 21 anos, para tirar-lhe o carro.

Esses três adolescentes criminosos que, em menos de duas semanas, apavoraram e comoveram todo o país, estimularam o ambiente favorável ao extermínio.

De verdade, a sociedade implícita ou explicitamente não quer reduzir a maioridade penal; quer exterminar os jovens bárbaros, seja enfiando-os num prisão, seja matando-os.

A apresentadora Hebe Camargo apenas expressou a vontade coletiva quando, na semana passada, disse que, se pudesse, faria "linguiça" de Xampinha. Aplaudida entusiasticamente, ela disse o que faria numa entrevista com o adolescente: "Se me deixarem, eu vou, mas vou armada. Eu saio de lá e vou para a cadeia. Mas ele não fica vivo".

Demonstrando senso de oportunidade, o governador Geraldo Alckmin saiu-se bem no noticiário ao levar a Brasília proposta de endurecimento das leis contra os menores infratores. Aderiu ao time do ilusionismo -seja por convicção, seja pela vocação dos políticos para gerar fatos que aplaquem comoções.

Sintomaticamente, as pessoas se interessaram muito mais pela mudança das leis, algo que depende de longas negociações congressuais e cujos resultados são no mínimo discutíveis, do que pelos debates sobre a reengenharia da Febem de São Paulo.

Está diminuindo o espaço de racionalidade. O problema essencial é que somos vítimas de gente que também é vítima. Se não tivermos a capacidade de lidar com essa incômoda obviedade, não vamos a lugar nenhum. Ou melhor, vamos: vamos disseminar, para sempre, a cultura inútil do extermínio.

Se fosse mais atenta às causas da violência, a opinião pública evidentemente não diria que o governador é o principal culpado da violência, acusando sua polícia de inepta -afinal, estamos pagando por séculos de descuido social combinados com as últimas décadas de baixo desenvolvimento econômico. Na semana passada, por exemplo, o IBGE mostrou o aumento do trabalho infantil, o que dá a idéia do ambiente de caos entre adolescentes.

Mas prestaria mais atenção ao que o governo pensa em fazer nas unidades da Febem -de onde saem os Leonardos que lá foram parar por posse de arma e são "assistidos" por quadrilhas- do que a mudanças legais.

A essência é a seguinte: vivemos num país que já está fazendo nossos jovens de linguiça, marginalizados economicamente, sabotados educacionalmente e triturados moralmente.

Fala-se mais em diminuir a maioridade penal do que em aumentar a menoridade educacional.

PS - Não perdi o otimismo de que estamos no caminho (lento, é claro) de uma sociedade mais civilizada por apostar na força crescente da comunidade e na progressiva consciência de que a educação é o maior valor social. Mas, neste momento, sinto-me um tanto abatido. Faço parte da geração que viu na resistência contra a ditadura a possibilidade de construção de uma nação mais pacífica e civilizada. Às vezes me pego sentindo saudades dos tempos em que eu andava nas ruas sem medo.

Além disso, faço parte de um grupo de comunicadores e educadores que atuam em ONGs, difundindo a idéia de que os jovens-linguiça são vítimas e, para nossa própria proteção, devemos tratá-los como vítimas. Sinto que cada vez menos gente está disposta a ouvir esse tipo de idéia e prefere ver os jovens entrando numa máquina de moer carne.

Para ser sincero, eu próprio me sinto um pouco linguiça, espremido, de um lado pelo discurso da barbárie e, de outro, pelos bárbaros.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, aos domingos.

   
 
 
 

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