REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

folha de s.paulo
24/09/2007

Um Brasil que nunca tinha visto

Os governantes saberão gastar melhor o que eles arrecadam para gerar menos esmolas e mais empregos?

Foi lançada, em 2005, uma campanha na cidade de São Paulo para que os motoristas não dessem dinheiro às crianças que pediam esmola nos semáforos, baseada no argumento de que esse tipo de auxílio dificulta tirá-las das ruas e, ao mesmo tempo, sustenta quadrilhas de adultos.

Como era previsível, a idéia nasceu cercada de desconfiança tanto sobre a possibilidade de as pessoas mudarem de atitude como, principalmente, de o governo oferecer, em contrapartida ao fim da esmola, um melhor atendimento a 4.030 crianças, que, naquele ano, moravam ou trabalhavam na rua.

A Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), ligada à Universidade de São Paulo, concluiu em 2007 um novo recenseamento e computou 1.842 crianças vivendo ou trabalhando nas ruas. Ainda é muito, mas a queda é de 54%.

A mudança da paisagem das ruas paulistanas é uma das traduções possíveis da estatística divulgada, na semana passada, pela Fundação Getúlio Vargas do Rio, sobre os miseráveis no país, cuja redução, de 2005 a 2006, foi de 5,9 milhões de pessoas.

Para muita gente da elite, que vive trancada em condomínios, trafegando em carros blindados e freqüentando os shoppings, talvez, a única forma de traduzir a estatística da miséria sejam as crianças nos semáforos. Há algo ainda mais profundo por trás desse fato: nunca tivemos tanta oportunidade de enfrentar com mais intensidade a pobreza, mesmo em comparação com o nosso período de crescimento econômico mundialmente invejado.

Seria uma leviandade estabelecer uma relação direta de causa e efeito entre o aumento da renda, a redução da população miserável e a população de rua. No caso paulistano, certamente, pesou a mudança de atitude dos motoristas, apesar de ainda tímida, de não dar esmola.

Pesou mais um programa municipal, inspirado no Chile e no México, de uma ação não só com as crianças mas com seus pais, oferecendo-lhe uma série de serviços complementares -e, no limite, acenando com o risco da perda da guarda do filho ou de processo aos adultos que exploram a indústria da esmola.

Juntaram-se elementos como o aumento da renda dos mais pobres, uma presença maior de assistentes sociais nas ruas, a ação em rede com as famílias e, enfim, a diminuição do número de pessoas dispostas a dar esmola -e, assim, se obteve um resultado que, até pouco tempo, quase ninguém acreditava ser possível.

A razão pela qual escrevo que nunca tivemos tanta oportunidade de reduzir a pobreza é a confluência, inusitada, de uma série de tendências favoráveis. Tantos são os fatores, originários de tantas articulações espalhadas pelo tempo e nos mais diferentes lugares, que seria uma asneira apontar um único autor -ou mesmo um punhado de iluminados- para as mudanças.

Combinam-se inflação baixa, crescimento econômico, maior escolaridade, menor taxa de fecundidade, elevação do salário mínimo e distribuição de recursos para quase a totalidade das famílias mais pobres.

A escolaridade ainda não está num nível civilizado, muitíssimo menos sua qualidade. Na média, a taxa de filhos por mulher é boa, mas esconde o fato de que, entre as mais pobres, a estatística é indecente. Todos esses fatores juntos, entretanto, são potencializados quando estão apoiados em políticas públicas menos ineficientes.
Baixa fecundidade significa menos demanda por vagas nas escolas, o que abre espaço para mais investimentos em qualidade.

É possível até mesmo disseminar, com menos dificuldade, a educação em tempo integral em bairros pobres, além das creches. Mais escolaridade significa menor incidência de gravidez precoce porque as adolescentes começam a ter outras perspectivas de vida -se o poder público consegue oferecer mais acesso a métodos anticoncepcionais, atingem-se resultados com mais rapidez, como demonstram experiências de planejamento familiar pelo país.

Some-se a isso que estamos produzindo bancos de dados detalhados sobre a realidade social, permitindo, assim, aprimorar o foco e estabelecer as metas.

Existem experiências de baixo custo, ilhas de excelência que oferecem tecnologias sociais capazes de acelerar a redução da pobreza. O problema é saber se, diante de tantas ondas favoráveis, o país vai conseguir forçar os governantes a fazer com que as ilhas de excelência em gestão pública não sejam apenas ilhas. E mais: se saberão gastar melhor o que arrecadam para que gerem menos esmolas e mais empregos.

Mesmo com todas as desconfianças sobre os governantes e nossa distância de um mínimo aceitável de civilidade, esse é um Brasil que nunca tinha visto -e, sinceramente, duvido de que alguém já tenha visto.

Só vamos mostrando que a democracia, com todos os seus defeitos, é o melhor mecanismo para gerir conflitos e produzir desenvolvimento.


PS - A quem quiser ver o que se faz com pouco dinheiro basta acompanhar os programas do semi-árido brasileiro que ensinam prefeitos a cuidar de crianças e adolescentes. Já começam a cair as taxas de mortalidade infantil e aumentar o número de matrículas escolares. Incompetência, sem exagero, mata.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
19/09/2007 Mapa das bicicletas
17/09/2007
Quanto custa Renan Calheiros
12/09/2007
Um arquiteto no ringue
10/09/2007
Qual é a maior estupidez brasileira?
09/09/2007 A primavera de São Paulo tem mais flores
05/09/2007 Periferia cor
04/09/2007 A invenção do Morro do Piolho
03/09/2007
A melhor experiência contra a violência
29/08/2007
Zelador de bairro
28/08/2007
A melhor bolsa de Lula
Mais colunas