Cheio
de livros, um jegue pára debaixo de uma árvore.
As crianças chegam, se sentam e ouvem histórias
O município de Alto Alegre do Pindaré, no sul
do Maranhão, tem 24 mil habitantes, espalhados em diversas
comunidades. As casas são de taipa, cobertas com ramos
de babaçu -boa parte dos homens e das mulheres não
sabe ler nem escrever. Ali, inventou-se um novo tipo de biblioteca:
a bibliojegue.
Abarrotado de livros, um jegue percorre os povoados e pára
debaixo de uma árvore frondosa. As crianças
e os adolescentes se aproximam, sentam em roda, pegam um livro
e ouvem um contador de histórias. O jegue consegue
exercer o fascínio que lembra a chegada de um circo.
Depois de um ano da experiência dessa biblioteca ambulante,
já se constatava entre os alunos aumento do interesse
pela leitura. Responsável pelo projeto, Alda Beraldo,
professora de português, conta que uma das maiores emoções
de sua vida foi ver mulheres analfabetas com os olhos cheios
de lágrimas ao ouvirem, pela primeira vez, uma poesia.
Um jegue solitário carregando livros por uma estrada
de terra no Nordeste tem tanto ou mais a dizer sobre como
reduzir a miséria no país do que os monumentais
planos elaborados em gabinetes ministeriais e estaduais -essa
é a principal dica do estudo lançado, na semana
passada, pelo Ministério da Educação
em parceria com o Unicef, no qual se contou o segredo das
escolas que, apesar de localizadas em locais pobres, têm
bom desempenho.
A bibliojegue faz parte de uma tendência ainda pouco
percebida e valorizada no Brasil, mas que integra a revolução
das pequenas coisas. É a constelação
de engenhosas soluções que, isoladamente, têm
baixo impacto, mas juntas seriam capazes de mexer nos indicadores
nacionais de educação, saúde, emprego
e preservação do ambiente.
A revolução das pequenas coisas engloba um bairro
deteriorado no centro do Recife transformado em porto digital,
onde se criaram 108 empresas que produzem software; a cidade
de Santa Rita de Sapucaí, em Minas, que, a partir de
uma escola de ensino médio de eletrônica, montou
uma cadeia produtiva em torno das telecomunicações
(lá se criou, por exemplo, a urna eleitoral eletrônica);
o parque tecnológico de São José dos
Campos para manter a produtividade das indústrias da
região, especialmente as vinculadas à atividade
aeroespacial, juntando universidades, centros de pesquisa
e empresas de base tecnológica. A Universidade Federal
de Santa Catarina orientou pescadores, em Florianópolis,
a ganhar dinheiro cultivando ostras. A Universidade de Campinas
ensina prefeituras a movimentar seus veículos com o
óleo descartado nos restaurantes da cidade.
A Universidade de São Paulo ajudou a desenvolver uma
empresa que treina moradores da periferia na construção
de sistemas baratíssimos de energia solar.
Em Belo Horizonte, alunos de escolas municipais são
apoiados, em atividades extracurriculares, pelas várias
universidades -lá, aliás, monta-se uma articulação
que vem permitindo aos estudantes mais pobres dividir seu
tempo entre a escola e alguma entidade, garantindo educação
em tempo integral.
Na cidade de São Paulo, vem caindo, apesar de ainda
alto, o número de crianças exploradas nos semáforos,
porque elas recebem dinheiro para ficar na escola e permanecer
mais tempo em atividades culturais e esportivas. A família
dessa criança recebe acesso privilegiado a programas
de assistência social. Em Nova Iguaçu, no Rio,
para evitar que jovens fiquem na rua, expostos à violência,
lançaram-se torneios de basquete e futebol de madrugada
durante os finais de semana. Em Diadema, a violência
caiu abruptamente porque a prefeitura comandou uma ação
na cidade, envolvendo os diversos níveis de poder.
O que está se inventando, em resumo, é tecnologia
social.
É essa tecnologia social que se vê nas 33 escolas
com bom desempenho, em lugares de extrema carência,
beneficiadas pela inventividade local. Numa delas criou-se
a "sacola literária" -os alunos levam livros
numa sacola para casa nos finais de semana. São convidados,
então, a contar a seus colegas o que leram. Em outras
dessas escolas, o professor vai à casa da família
cujo filho está faltando às aulas. Na José
Negri, em Sertãozinho (interior de SP), aprende-se
fração comendo bolo.
Do parque tecnológico de São José dos
Campos à bibliojegue de Alto Alegre do Pindaré,
passando pelos bolos que ensinam matemática, desenha-se
um novo olhar sobre o desenvolvimento social baseado mais
no Brasil do que em Brasília.
PS - Esse é o olhar realista para encarar as possibilidades
e os limites de redução da miséria de
Lula e dos novos governadores em futuro mandato -o resto é
ilusão ou desinformação.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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