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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
24/12/2006
A revolução das pequenas coisas

Cheio de livros, um jegue pára debaixo de uma árvore. As crianças chegam, se sentam e ouvem histórias

O município de Alto Alegre do Pindaré, no sul do Maranhão, tem 24 mil habitantes, espalhados em diversas comunidades. As casas são de taipa, cobertas com ramos de babaçu -boa parte dos homens e das mulheres não sabe ler nem escrever. Ali, inventou-se um novo tipo de biblioteca: a bibliojegue.

Abarrotado de livros, um jegue percorre os povoados e pára debaixo de uma árvore frondosa. As crianças e os adolescentes se aproximam, sentam em roda, pegam um livro e ouvem um contador de histórias. O jegue consegue exercer o fascínio que lembra a chegada de um circo.

Depois de um ano da experiência dessa biblioteca ambulante, já se constatava entre os alunos aumento do interesse pela leitura. Responsável pelo projeto, Alda Beraldo, professora de português, conta que uma das maiores emoções de sua vida foi ver mulheres analfabetas com os olhos cheios de lágrimas ao ouvirem, pela primeira vez, uma poesia.

Um jegue solitário carregando livros por uma estrada de terra no Nordeste tem tanto ou mais a dizer sobre como reduzir a miséria no país do que os monumentais planos elaborados em gabinetes ministeriais e estaduais -essa é a principal dica do estudo lançado, na semana passada, pelo Ministério da Educação em parceria com o Unicef, no qual se contou o segredo das escolas que, apesar de localizadas em locais pobres, têm bom desempenho.

A bibliojegue faz parte de uma tendência ainda pouco percebida e valorizada no Brasil, mas que integra a revolução das pequenas coisas. É a constelação de engenhosas soluções que, isoladamente, têm baixo impacto, mas juntas seriam capazes de mexer nos indicadores nacionais de educação, saúde, emprego e preservação do ambiente.

A revolução das pequenas coisas engloba um bairro deteriorado no centro do Recife transformado em porto digital, onde se criaram 108 empresas que produzem software; a cidade de Santa Rita de Sapucaí, em Minas, que, a partir de uma escola de ensino médio de eletrônica, montou uma cadeia produtiva em torno das telecomunicações (lá se criou, por exemplo, a urna eleitoral eletrônica); o parque tecnológico de São José dos Campos para manter a produtividade das indústrias da região, especialmente as vinculadas à atividade aeroespacial, juntando universidades, centros de pesquisa e empresas de base tecnológica. A Universidade Federal de Santa Catarina orientou pescadores, em Florianópolis, a ganhar dinheiro cultivando ostras. A Universidade de Campinas ensina prefeituras a movimentar seus veículos com o óleo descartado nos restaurantes da cidade.

A Universidade de São Paulo ajudou a desenvolver uma empresa que treina moradores da periferia na construção de sistemas baratíssimos de energia solar.

Em Belo Horizonte, alunos de escolas municipais são apoiados, em atividades extracurriculares, pelas várias universidades -lá, aliás, monta-se uma articulação que vem permitindo aos estudantes mais pobres dividir seu tempo entre a escola e alguma entidade, garantindo educação em tempo integral.

Na cidade de São Paulo, vem caindo, apesar de ainda alto, o número de crianças exploradas nos semáforos, porque elas recebem dinheiro para ficar na escola e permanecer mais tempo em atividades culturais e esportivas. A família dessa criança recebe acesso privilegiado a programas de assistência social. Em Nova Iguaçu, no Rio, para evitar que jovens fiquem na rua, expostos à violência, lançaram-se torneios de basquete e futebol de madrugada durante os finais de semana. Em Diadema, a violência caiu abruptamente porque a prefeitura comandou uma ação na cidade, envolvendo os diversos níveis de poder.

O que está se inventando, em resumo, é tecnologia social.

É essa tecnologia social que se vê nas 33 escolas com bom desempenho, em lugares de extrema carência, beneficiadas pela inventividade local. Numa delas criou-se a "sacola literária" -os alunos levam livros numa sacola para casa nos finais de semana. São convidados, então, a contar a seus colegas o que leram. Em outras dessas escolas, o professor vai à casa da família cujo filho está faltando às aulas. Na José Negri, em Sertãozinho (interior de SP), aprende-se fração comendo bolo.

Do parque tecnológico de São José dos Campos à bibliojegue de Alto Alegre do Pindaré, passando pelos bolos que ensinam matemática, desenha-se um novo olhar sobre o desenvolvimento social baseado mais no Brasil do que em Brasília.

PS - Esse é o olhar realista para encarar as possibilidades e os limites de redução da miséria de Lula e dos novos governadores em futuro mandato -o resto é ilusão ou desinformação.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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