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REFLEXÃO


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Folha de s.paulo
25/04/2004
Professor-doutor desocupado

Em entrevista publicada na terça-feira passada na Folha, o pianista Arnaldo Cohen, reconhecido mundialmente, disse que pensou em deixar Londres e voltar para o Rio de Janeiro, onde nasceu. Desistiu. Não só pela questão de segurança mas, principalmente, pela falta de perspectivas profissionais, preferiu morar nos Estados Unidos, onde foi convidado a dar aulas. O Brasil, segundo ele, é "inviável" -e aqui ele não seria reconhecido.

Cohen é um dos ícones de um dos desastres nacionais: o desperdício de talentos, nutridos em décadas de estudos, pesquisas e experiências.
Nações ricas como os Estados Unidos esforçam-se para atrair talentos de todo o mundo para transformar conhecimento em riqueza. Na sua pobreza, o Brasil subutiliza ou perde um naco do melhor de seu capital humano.

O presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Carlos Vogt, informa que o país recebe anualmente mais de 7.000 doutores. Uma minoria deles, porém, consegue colocação para fazer pesquisa nas empresas ou na universidade. Ficam encostados, mal aproveitados ou até integram estatísticas, como a divulgada na quinta-feira, de 2 milhões de desempregados apenas na região metropolitana de São Paulo. "É uma tristeza. Afinal, gastou-se muito dinheiro com esses pesquisadores", lamenta Vogt, ex-reitor da Unicamp.

É difícil conseguir bolsas para as pesquisas. Segundo informou a mais recente edição do caderno Sinapse, dos 16 mil pedidos de bolsa feitos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, apenas mil serão atendidos. Quem conseguir ganhará a fortuna de R$ 1.267, sem direito a outro emprego.

Mais complicado ainda é entrar em uma universidade pública. Devido ao corte de verbas, abrem-se poucas vagas para professor. Mesmo que se consiga uma delas, o salário é baixo. Um motorista de táxi consegue ter rendimento parecido com o de um professor universitário iniciante.

Por conta dos temores relativos às mudanças nas regras de aposentaria, levas de professores universitários decidiram vestir o pijama no auge de seu vigor intelectual; muitas das vagas não foram preenchidas. Quem não foi para casa à espera da morte mudou-se para uma faculdade particular, onde se paga melhor, mas a pesquisa é escassa, para não dizer quase inexistente.

Não são poucos aqueles que, independentemente de mudanças nas regras de aposentaria, preferiram sair das universidades públicas, muitas delas sucateadas, à procura de melhores posições no mercado de ensino.

Já se nota que alunos de escolas de elite apontam como primeira opção, em determinados cursos, as faculdades privadas. Se essa onda de reservas e cotas para alunos negros e de escolas públicas não tiver como contrapartida um esforço para ajudá-los a recuperar o que não foi aprendido, o ambiente nas universidades públicas sofrerá mais um baque -o que significará mais força às instituições particulares, muitas das quais sem compromisso com a pesquisa, que, como se sabe, é cara e demanda tempo.

Costuma-se dizer (e com uma dose de razão) que um dos problemas das escolas públicas foi a perda dos alunos de maior poder aquisitivo. Gerou-se, assim, um círculo vicioso: como os ricos não estão lá, a qualidade do ensino público deixou de ser uma preocupação sincera dos poderosos.

É o risco que corre a vida acadêmica e científica brasileira: afastar as elites. Para obter um título de doutor, são necessários mais de 20 anos de estudo. Por que os mais talentosos farão tanto esforço se, na ponta final, não obtiverem reconhecimento profissional?

Sobraria, então, ir para fora, em um auto-exílio, o que é uma experiência dolorosa. Quem já morou no exterior sabe como muitos brasileiros se tornam zumbis, não se sentem pertencentes a nenhum lugar. Sonham, como o pianista Arnaldo Cohen, em voltar, mas temem a volta, receosos da inviabilidade.

Talvez o pianista faça ainda mais sucesso e ganhe ainda mais dinheiro. Mas aquela tristeza do auto-exilado não vai sumir. A vida dele sempre será, no fundo, um pouco desafinada.

A viabilidade de um país depende de seu capital humano. E a riqueza do capital humano depende de que as pessoas se sintam recompensadas por se sentirem úteis, transformando conhecimento em riqueza -e não como se estivessem exiladas, como se fossem estrangeiros, nunca reconhecidos em seu próprio país.

PS - São inúmeros os depoimentos de estudantes que fizeram os tão cobiçados MBAs e estão à procura de emprego. Maior ainda é o número de pessoas que, com diploma de ensino superior na mão, acabam atuando em atividades que exigem uma qualificação bem inferior. Há inúmeras formas de avaliar o custo de uma crise econômica prolongada. Uma delas é as pessoas começarem a desconfiar do conhecimento como alavanca de progresso individual e coletivo.

Esta coluna é publicada originalmente na Folha de São Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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