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Na semana passada, alguns estudantes
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
provocaram polêmica nacional com a publicação
de comentários do seguinte tipo: os negros deveriam
agradecer a escravidão, sem a qual ainda estariam na
África. Homossexualismo é doença, e o
vírus da Aids a cura.
Tais tipos de comentário, publicados num fanzine, foram
encarados por muitos como brincadeira. Não é.
É sinal de vírus do cinismo que se espalha entre
jovens, propagando num ambiente em que a política é
sinônimo de bandalheira. Aumentar essa tendência
talvez seja uma das piores conseqüências da onda
de denúncias contra o PT, até pouco tempo ancorado
na bandeira da ética.
A repercussão aos comentários não se
deu apenas pelas supostas piadas, mas, em especial, por causa
de seus autores e do local em que estudam. Eles estão
na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde
se formaram 11 presidentes da República e se tramaram
a Abolição da Escravatura, a Proclamação
da República, a resistência ao Estado Novo, de
Getúlio Vargas, e ao regime militar. Ali, estudaram,
por exemplo, Ruy Barbosa, Castro Alves, Monteiro Lobato e
José Bonifácio de Andrada e Silva. Nenhuma instituição
acadêmica teve tanta influência na história
do Brasil.
O fanzine foi elaborado por um grupo batizado de Escória,
que, no ano passado, venceu a eleição para o
Centro Acadêmico XI de Agosto, já presidido por
Ulyssses Guimarães. O slogan da Escória, na
eleição, era "balada, bebida e putaria".
Assumidamente, trocavam votos por bebida. Essa brincadeira
é mais séria do que se imagina.
A seriedade se vê numa recente pesquisa da MTV, realizada
pelo Datafolha, na qual se mostrou que os jovens se percebem
como vaidosos, consumistas, acomodados e individualistas.
Desacreditando em ações coletivas, a imensa
maioria deles acha que os políticos, independentemente
de partidos, são iguais e incorrigíveis.
Antes mesmo de todos desses escândalos, 74% dos jovens,
segundo a pesquisa, achavam que o comportamento de Lula era
igual ou pior do que o de seus antecessores. Imagine agora
com as notícias sobre "mensalões",
as gravações sobre as propinas, as entrevistas
de Roberto Jefferson e a queda de José Dirceu.
Até que ponto o fato de Enéas, com sua promessa
de construir uma bomba atômica, ter sido o deputado
federal mais votado em São Paulo não sinalizaria,
em parte, o efeito "bebida, balada e putaria"?
O descrédito da juventude é provocado pela corrupção,
pela incompetência com recursos públicos e pelo
marketing guindado à condição de ideologia.
Mas também da desinformação -e, aí,
nós dos meios de comunicação temos uma
parcela de culpa.
Quem acha que estamos passando por um período de decadência
moral está desinformado. Estamos vivendo um processo
de aperfeiçoamento da democracia, na qual as mais diversas
instituições -como imprensa, Congresso, Ministério
Público, Polícia Federal e entidades não-governamentais-
desenvolveram melhores mecanismos para apurar, denunciar e
atacar desvios de recursos.
Estamos menos desprotegidos hoje contra desmandos e falcatruas
do que éramos no passado. Prova disso é que
o PT, tão bom em denunciar, tem dificuldade agora para
se defender.
Também é desinformação -afinal,
basta olhar friamente os números- não reconhecer
avanços sociais. Graças a programas de médico
de família e agentes comunitários de saúde,
a mortalidade infantil não pára de cair; o ensino
fundamental está universalizado; cai a taxa de fecundidade
entre as mulheres; cidades estão conseguindo, aos poucos,
enfrentar a violência; disseminam-se as mais diferentes
experiências de enriquecimento comunitário em
saúde, educação, ambiente, geração
de renda. Nunca tantos pobres receberam tantos recursos diretamente,
sem passar por intermediários. Vemos uma intensa qualificação
de lideranças locais, treinadas para gerir melhor os
recursos públicos.
Neste ano, graças à articulação
da sociedade, impediu-se que o governo aumentasse impostos
e os parlamentares e juízes elevassem seus rendimentos.
O melhor antídoto para o vírus do cinismo,
no qual vale tudo, até mesmo toscas ofensas a negros
e homossexuais, é dizer a verdade.
E a verdade é seguinte: estaríamos melhor se
os governantes gastassem mais e melhor os recursos em educação,
se não achacassem tantos os empreendedores com impostos
e se não devolvessem tão pouco em serviços.
Mas que, apesar das falcatruas, incompetências e de
seus indesculpáveis indicadores sociais considerando
nossa riqueza econômica, o país consegue melhorar
pelo simples motivo de que a democracia é o único
sistema consistente e duradouro de avanços políticos,
econômicos e sociais.
PS- Evidentemente, a Escória não representa
toda uma faculdade. Dessa mesma geração de alunos
saiu um grupo que fundou o Sou da Paz, entidade que tem ajudado
a construir notáveis experiências contra a violência
e foi pioneiro na campanha pelo desarmamento. Ajudaram a fazer,
por exemplo, com que o Jardim Ângela, região
mais violenta do planeta até 2001, reduzisse seu índice
de homicídios em 75%. Na semana passada, o prefeito
José Serra chamou o Sou da Paz para ajudar a disseminar
sua experiência de combate à violência
em toda a cidade de São Paulo. Ainda prefiro pensar
no Centro XI de Agosto como um lugar que, há décadas,
presta assistência jurídica gratuita e não
me faz sentir jogando meu dinheiro fora para pagar o curso
superior de adolescentes que envelheceram precocemente, divertindo-se
com ofensas a negros e homossexuais.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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