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REFLEXÃO


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urbanidade
26/07/2006
Um raro prazer na Vila Madalena

Expulsa de casa, ela desistiu de estudar direito. E hoje não quer deixar a direção da escola que tornou modelo


A família estava reunida, tensa, na sala de estar da casa em Ribeirão Preto. Militar da reserva, o pai dirigiu-se a Maria de Fátima, uma de suas filhas, e a expulsou de casa, aos berros. "Você é um câncer na minha vida." Então com 17 anos, ela militava na esquerda católica, apoiava a derrubada do regime militar, vociferava contra a tortura -e sempre enfrentava a ira paterna. Naquele dia, carregando essa frase de despedida, ela se tornou mais uma migrante desempregada a chegar à cidade de São Paulo. "Tive de abandonar meu sonho de estudar direito." Pelos caminhos mais diversos, acabou ajudando a reinventar uma escola.

Para sobreviver, formou-se técnica em contabilidade e, tempos depois, virou arrimo de família -o pai desapareceu. Maria de Fátima não gostava do que fazia, achava aquelas contas, frias, um desperdício de tempo. Lembrava-se de sua adolescência. Era uma aluna tão aplicada que sempre a chamavam, na falta de um professor, a dar aula.

Enquanto ia suportando a contabilidade, estudava, à noite, pedagogia. Até que decidiu jogar tudo para o alto, concorreu a uma vaga de professora na rede municipal e se meteu na periferia. "Apesar de todas as dificuldades, estava mais feliz." Em 1997, foi dirigir, na Vila Madalena, a Olavo Pezzotti, grudada ao "mangue", a zona de cortiços conhecida pela violência.

A escola era praticamente desconhecida até a recente divulgação do teste nacional (Prova Brasil) de matemática e língua portuguesa, no qual seus resultados não só foram muito acima da média da cidade de São Paulo mas superaram os das capitais que ficaram em primeiro lugar. "Só fiz o óbvio."

O "óbvio" significou estabelecer uma rede de contatos nas redondezas para que os estudantes usufruíssem de serviços de saúde, cultura, lazer e esporte, além de reforço escolar -uma rede que engloba o centro de saúde, entidades religiosas, consultórios de psicólogos e psicopedagogos, escolas de dança, ACM, Sesc, o Brincante, de Antônio Nóbrega, e o Centro Cultural Tomie Ohtake.

Para aprender a lidar com os portadores de deficiência, ela bateu às portas da USP e da PUC, universidades próximas da Vila, para que ajudassem a formar seus professores. De contato em contato, Maria de Fátima fez de todo o bairro um espaço integrado de aprendizagem, uma espécie de sala de aula a céu aberto.

"Não gastei nada, apenas saí batendo na porta de quem podia ajudar." A divulgação das notas da Prova Brasil está levando uma romaria de pais e educadores para a escola -os pais para tentar encontrar uma matrícula para os filhos; os educadores para entender como a Olavo Pezzotti trabalha. "Agora vejo que valeu a pena não ter estudado direito."

Essa movimentação está mudando os planos de Maria de Fátima, agora com 54 anos, que também acha que não vale a pena vestir o pijama. Poderia se aposentar. "Sou mais feliz assim." Para quem chegou a esse estágio da vida, metido numa escola pública, com tantas dificuldades, querer continuar em sala de aula é um raro prazer.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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