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REFLEXÃO


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urbanidade
28/03/2007
Cátia, Simone e outras Marvadas

Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje

Só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que um dia seria escritor

Um pedaço da história de vida de Sebastião Nicodemes está na capa do livro que ele vai lançar na próxima sexta-feira. A capa é feita de papelão encontrado na rua, ilustrada por filhos de catadores de papel. "É meu primeiro livro", orgulha-se o ex-catador de papel. Os textos foram escritos em cima de uma laje, onde Tião alugou um pequeno quarto. "Fico olhando o céu, e a inspiração vai aparecendo. É como se eu ainda morasse na rua." Ex-morador de rua, ele já consegue pagar o aluguel daquele quarto porque faz bicos artísticos.

Tião produz bonecos com papel reciclado, com os quais conta histórias para crianças, ajuda em roteiros de filmes e documentários, e já escreveu o texto de uma peça, intitulada "Diário de um Carroceiro", apresentada no ano passado no Teatro Fábrica. Está conseguindo, agora, lançar "Cátia, Simone e outras Marvadas", por causa de uma experiência produzida na última Bienal.

Um grupo de artistas resolveu apoiar a edição de livros produzidos por filhos de catadores de papel e seus filhos - assim surgiu a Edições Dulcinéia Catadora. São sempre cem exemplares, todos artesanais e com desenhos diferentes. "O que queremos é estimular o prazer de criar", diz Lúcia Rosa, uma das artistas envolvidas no projeto.

Tião escreve prosas e poesias que misturam fragmentos autobiográficos e histórias inspiradas no que vê na rua. Escreve à noite, num bloco de papel, sentado na laje acoplada ao cubículo, no Brás. "Eu me sinto maior sentindo o Universo". A sensação de grandeza também tem um motivo concreto: há três meses está conseguindo pagar o aluguel daquele quarto. Até dormia em abrigos públicos, depois de sair da rua. "Não gostava de viver de favor." Tal sensação de grandeza ajudou-o a recordar e colocar no papel suas decepções, inclusive amorosas.

Migrante, Tião tinha emprego em São Paulo. Mas adoeceu e, quando voltou do hospital, nem sequer tinha lugar onde morar. A frustração chamou a bebida e, assim, instalou-se um círculo vicioso. Para sobreviver, viveu nas ruas que cercavam o Mercado Municipal. A dor que manteve guardada foi não ter recebido, no hospital, a visita de amigos. Nem da mulher - uma das "marvadas" - com quem estava noivo e com quem pensava que iria casar. "Parece que tudo desabou em segundos." Tião só não afundou de vez porque tinha um prazer de se comunicar pela arte, escrevendo poesias e peças. Sabia que -mas não sabia quando- um dia seria um escritor. "Só o que não imaginei é que, todas as noites, teria o prazer de adormecer ao ar livre."

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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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