Até
que ponto existe relação entre o abuso da bebida
e a publicidade? A resposta está em duas pesquisas
inéditas
Pelo menos 25% dos brasileiros consomem bebida exageradamente,
segundo informa estudo, ainda inédito, patrocinado
pela Senad (Secretaria Nacional Antidrogas). É a primeira
pesquisa sobre consumo de álcool realizada por domicílio.
Esse dado ajuda a esclarecer por que ocorrem tantos acidentes,
doenças e mortes associadas ao consumo de álcool.
Fica, então, a pergunta: até que ponto existe
relação entre o abuso da bebida e a publicidade?
A resposta a essa questão está em mais duas
pesquisas também inéditas.
Selecionado pela Universidade Federal de São Paulo,
um grupo de 282 adolescentes foi submetido à observação
de diferentes propagandas de cerveja. Os pesquisadores, comandados
pela psiquiatra Ilana Pinsky, estavam interessados em saber
como aquelas mensagens eram percebidas. Nenhum dos entrevistados
sabia o verdadeiro propósito da experiência.
De posse das respostas, a psiquiatra Ilana Pinsky analisou
quantas proibições contidas na auto-regulamentação
feita, portanto, pelos próprios publicitários
para os comerciais de cerveja seriam desrespeitadas. "Quase
todas", afirma ela, ao analisar não apenas o que
os adolescentes pensavam mas também o que sentiam,
traduzindo a linguagem subliminar dos anúncios.
Uma das regras da auto-regulamentação é
evitar o erotismo. Nem precisaria uma sessão pilotada
por especialistas em saúde mental para desconfiar de
que a atriz Juliana Paes, apresentada nos comerciais de cerveja
como "a boa", não aparece como uma sóbria
professora ensinando seus alunos em uma sala de aula. "A
auto-regulamentação não funciona",
opina Ilana. A propaganda, porém, funciona e muito
bem. Em outra pesquisa, ela detectou que, em determinada parcela
dos entrevistados, as imagens estimularam o consumo abusivo.
"Quem já bebia sentiu-se estimulado a beber mais."
Tais resultados dão uma pista da complexidade da luta
para reduzir os riscos associados ao álcool, e a genialidade
publicitária é um dos ingredientes que contribuem
para que essa seja uma das mais difíceis batalhas da
saúde pública. A razão dessa dificuldade
não são apenas as bilionárias verbas
envolvidas na indústria da bebida, das quais nós,
dos meios de comunicação, aliás, somos
beneficiários, sem contar seu patrocínio a campanhas
eleitorais. Muitas das batalhas pela saúde pública
foram movidas por consensos ou enormes apoios populares. Assim
se implantou o uso do cinto de segurança e disseminaram-se
práticas como o aleitamento materno, o uso do sal de
reidratração oral, da vacina Sabin e da camisinha,
entre muitas outras. Mesmo o tabagismo é mais fácil
de combater, porque já se difundiu a informação
de sua relação com o câncer. O risco de
alguém se viciar rapidamente é enorme.
O álcool é beneficiado por um misto de desinformação
com aceitação cultural. Um belo exemplo de desinformação
foi exibido pelo publicitário Roberto Justus, que,
em entrevista à Folha, disse que as cervejas não
oferecem perigo, mostrando desconhecer os mais elementares
estudos sobre o alcoolismo. Duas latas de cerveja equivalem
a uma dose de vodca. Um pai fica apavorado quando o filho
fuma um cigarro de maconha, mas é compreensivo diante
de um porre. Psicólogos e educadores sabem que as "baladas"
estão cada vez mais perigosas. Liga-se a bebida ao
prazer e à alegria mas também à saúde,
o que não deixa de ser, pelo menos em parte, verdade.
É comprovado que uma taça de vinho tinto é
bom para o coração. Essas são mensagens
conflitantes, que acabam por fomentar o consumo exagerado
do álcool entre os 25% dos brasileiros que, segundo
o estudo inédito da Senad, abusam da bebida.
Juntem-se os bilhões da indústria, a ignorância
e a tolerância cultural: entendemos, assim, como, apenas
em acidentes, morrem cem pessoas por dia. Isso sem contar
os feridos.
PS - Coloquei no site mais
detalhes das pesquisas da Universidade Federal de São
Paulo. Sou dos que acham que as determinações
do governo são amenas, apesar de provocarem a ira de
alguns. Assim como o cigarro, a maconha e a cocaína,
o álcool oferece perigo à saúde mental
e pode criar dependência. Nenhuma pessoa responsável
deveria, portanto, estimular seu consumo. Muito menos seu
abuso.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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