HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

folha de s.paulo
29/01/2007
A maravilhosa receita do filé de javali

Os aprendizes de cozinheiro são jovens pobres e moram na periferia. Em pouco tempo, estarão empregados

Pelos enormes vidros da cozinha, fiquei observando, no almoço da quarta-feira passada, jovens preparando filés de javali cobertos com molho balsâmico e acompanhados de risoto à parmegiana. É um espetáculo que vai além dos prazeres da gastronomia.

Todos os alunos vêm de famílias pobres, a maioria é negra, estudam em escolas públicas e vivem na periferia. Mas o interessante mesmo é que, em pouco tempo, estarão empregados. Daquele restaurante-escola, criado, em 2003, com a ajuda das prefeituras de Lyon (França) e Genebra (Suíça), mantido pela Prefeitura de São Paulo em parceria com uma fundação, 100% dos alunos saem contratados com carteira assinada. Existe uma lista à espera dos restaurantes pelos formandos.

É um curso de tempo integral, no qual os aprendizes recebem uma bolsa, aulas teóricas de professores de uma das melhores escolas de gastronomia de São Paulo (Anhembi Morumbi) e são orientados por um chef (Wolmar Zocce) que cursou, em Milão, a Academia de Cozinha Italiana. Para completar, passam por um curso de francês.

O restaurante é onde testam o que aprendem. Só que os clientes são de verdade: a medida do sucesso está na lotação das mesas.

Há um fato praticamente desconhecido até mesmo das autoridades públicas relacionado a esse encontro entre o aprendizado da culinária sofisticada e a periferia paulistana.

Na semana passada, por causa da comemoração dos 453 anos da cidade, a Fundação Seade garimpou uma estatística exclusivamente para esta coluna. Das pessoas de 18 a 24 anos que vivem na cidade de São Paulo -idades aproximadas daqueles jovens que vi preparando a comida-, 80% estão cursando o ensino médio ou já concluíram alguma faculdade. Pode-se discutir a qualidade, claro, mas esse número está próximo ao de nações desenvolvidas.

Esse número seria mais uma das hipóteses, entre outros como o Bolsa Família, para explicar a crescente saída de migrantes da cidade. Além da falta de empregos por causa do baixo crescimento, haveria também exigências maiores num lugar em que o ensino médio chega a tanta gente. "O empregador sempre vai optar por alguém com melhor escolaridade", diz a diretora-executiva do Seade, Felícia Madeira.

Não se consegue mais entender nem a cidade de São Paulo nem as regiões metropolitanas -e, portanto, nem o Brasil- sem olhar como o mercado de trabalho vai moldando os indivíduos.

Nesse aumento de qualificação está parte das explicações para algumas das estatísticas sobre São Paulo divulgadas pelo Seade: as mulheres paulistanas, mesmo as mais pobres, têm cada vez menos filhos. Resultado: a população está mais velha (a média é de 31 anos) e diminuiu o ritmo de crescimento demográfico, gerando uma nova paisagem humana.

Compreende-se, a partir dessa nova paisagem, a mudança gradual dos governantes em suas agendas de prioridades.

O prefeito Gilberto Kassab comemorou o aniversário da cidade prometendo criar mais
22 CEUs e 70 escolas; escolas velhas ganhariam, além de reformas, 300 salas de aula. Comprometeu-se a transformar 225 clubes esportivos em clubes-escola, criando uma opção voluntária de educação tempo integral.

José Serra mostra-se decidido a ampliar a oferta de cursos profissionalizantes médio e superior e facilitar o acesso a cursos pré-vestibular. Estuda criar escolas de excelência de ensino médio semelhantes aos antigos colégios de aplicação, onde se testariam inovações pedagógicas -a idéia é que a primeira unidade seja no antigo prédio do Caetano de Campos, em frente à praça da República. Lula quer acabar o segundo mandato com a imagem associada à educação, investindo na formação de professores e bancando programas para aproximar a escola da comunidade, inspirado na experiência dos bairros educativos desenvolvidas em Nova Iguaçu e em Belo Horizonte, ligadas ao PT.

Kassab, Serra ou Lula vão fazer (e bem feito) o que estão prometendo? A julgar pelo histórico de governantes e suas promessas, impossível não ter dúvidas. Existe, porém, um argumento pragmático a favor deles.

Sabem que os mais pobres vão diferenciar os políticos não só pelas obras ou pelos programas assistenciais. Vão julgá-los também pela chance que ofereceram para que os eleitores estivessem mais preparados a obter um emprego -exatamente a chance que estão tendo aqueles jovens com seu filé de javali ao molho balsâmico.



PS - Para quem quiser conferir. Como é um projeto subsidiado, o restaurante-escola, instalado na Câmara, oferece um bom preço. Salada, prato principal e sobremesa saem por R$ 18. Não conheço nenhum lugar em São Paulo com comida tão sofisticada por tão pouco.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
25/01/2007
Ingratos com São Paulo
24/01/2007 O herói de rua
23/01/2007
Remédio contra gravidez precoce
19/01/2007
Por que me sinto desrespeitado
17/01/2007
Um sonho perdido nas marginais
15/01/2007
Prendam a chuva
15/01/2007
O mar e o buraco
10/01/2007 Arte marginal
09/01/2007
Clube-escola: esporte nota 10
02/01/2007
Nunca vi o Brasil tão bem