HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 

folha de S.paulo
29/05/2006
Aprendendo a chorar

O roteiro por trás de "Querô" mostra que a prevenção à violência começa quando o jovem se sente respeitado

Até o começo do ano passado, o adolescente Maxwell do Nascimento ainda não sabia se ficaria longe do crime. "O crime era uma possibilidade", admite. Essa opção não seria surpresa em seu bairro, nas imediações do Mercado Municipal, em Santos, repleto de casos de jovens envolvidos com gangues e drogas. Foi salvo pelo cinema. "Meu projeto agora é ser ator."

Após vários meses de testes, foi escolhido para fazer o papel do ator principal do filme "Querô", a ser lançado neste ano, baseado no livro do santista Plínio Marcos; o tema é a infância marginalizada encenada nas ruas próximas do porto de Santos. Além de Maxwell, mais 38 adolescentes, todos pobres, participaram de variadas oficinas de expressão antes das filmagens. Ao ensaiar as falas, muitas vezes confundiam-se ficção e realidade. Alguns deles acabavam chorando de verdade sem entender muito bem o porquê. "Eles aprenderam que homem não chora", conta Carlos Cortez, diretor do filme. Nas cenas de agressão, não raro o murro ia com força, como se estivessem nas ruas.

Aos poucos, eles iam se conhecendo, descobrindo o prazer do aprendizado e fazendo planos para o futuro. A mudança de Maxwell foi tão visível que sua mãe, Maria Nilza, teve uma estranha reação ao ser informada de que o filho passaria a ganhar um cachê. "Não precisa pagar. Isso que vocês fizeram já está bom."

O cineasta não sabia que, ao documentar a mudança dos meninos, estava registrando, passo a passo, um roteiro didático de prevenção à violência -esse tipo de experiência torna-se ainda mais valioso depois do trauma provocado pelo PCC.

Na semana passada, Lula usou o horário destinado ao PT na televisão para voltar a dizer que a educação é a melhor arma contra a violência; esse deve ser um dos temas preferenciais de sua campanha. As generalidades de campanha são, porém, traduzidas com perfeição por Maxwell e seus 38 amigos, naquele mesmo cenário que, por coincidência, fez parte da adolescência do migrante Lula.

Ao ser chamado para os ensaios, o adolescente Richard Berovelli disse algo extraordinariamente sintético sobre a sensação de impotência. Não tinha idéia sobre o que faria no futuro e, aliás, nem se teria algum futuro. "Ia deixar a vida escolher para mim." Traduzindo, ele já estava rendido.

O roteiro por trás das telas de "Querô" mostra que a prevenção à violência começa quando a criança e o jovem se sentem respeitados, passam a gostar de si, desenvolvem uma relação de pertencimento a algo (no caso, a arte) e, enfim, se tornam visíveis. Inicia-se, assim, a quebra do círculo vicioso da marginalidade.

O que se vê aqui é o sucesso, já comprovado, do uso das mais diferentes formas de expressão, através da arte e da comunicação, para gerar perspectivas de vida. Isso significa, na prática, que educação contra a violência funciona quando se estimulam, dentro e fora da escolas, programas para o jovem ser protagonista, agente e beneficiário da mudança.

Nas escolas abertas aos fins de semana, a violência tem caído sistematicamente. Naquelas em que, além de abertas, há programas de protagonismo juvenil, a queda é maior ainda. Outra lição do "Querô". Em meio aos ensaios, os jovens eram convidados a encontrar espaços culturais em Santos, onde poderiam apreciar, sem pagar, manifestações de arte ; o Sesc, por exemplo. Montou-se então uma trilha de aprendizado fora da escola. As filmagens já acabaram, mas eles continuam a receber aulas para a produção de vídeos e, através de suas câmaras, redescobrem a vida.

Finalmente, como eles já estavam se sentido integrados a algo -e a comunidade passava a ser um foco em realização-, foi mais fácil fazer com que valorizassem a família e a escola.

Nada disso significa que o futuro tenha se aberto a eles. Há muitos obstáculos pela frente para ter uma boa escolaridade e conseguir um bom emprego. Mas, se os políticos quiserem levar a sério a frase de que a melhor arma contra a violência é a educação (o que em termos gerais está certo, mas é apenas um chavão vazio), o caminho é preparar esquemas para que as pessoas possam se expressar e, assim, não serem invisíveis. Quanto mais cedo, melhor.


P.S- Duas experiências feitas pela USP e pela Unicamp com 7.000 professores e diretores das redes municipal e estadual de SP vêm coletando muitas lições como a de "Querô"; o curso visa formar educadores comunitários. Eles estão sendo treinados a fazer de suas escolas centros de articulação que envolvam a família e a cidade, a começar do bairro; formam-se, assim, trilhas educativas em torno das escolas. Os relatos têm mostrado que aqueles que conseguem articular melhor esses ambientes -escola, família e comunidade- tendem a produzir alunos eficientes e cidadãos responsáveis.


Comunidade faz Cinema
USP treina professor comunitário
A invenção do professor-visitador
Professor Comunitário
Educação comunitária para os paulistanos
Professor ganha nova função dentro e fora de sala de aula
Violência cai 40% com a abertura das escolas nos fins de semana


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
24/05/2006
Calçada da infâmia
23/05/2006
Planejamento familiar é arma contra a violência
22 /05/2006
PCC é mal que veio para o bem?
17/05/2006
O problema não é o PCC
17/05/2006
Golpe de mestre
16/05/2006
Não dá mais para esperar
15 /05/2006
Policiais morrem, mas o alvo somos nós
15 /05/2006
Chico Buarque e a detestável São Paulo
10 /05/2006
Ruas falantes
09/05/2006 Gastômetro: uma grande idéia