Com tantas
limitações, a sobrevivência emocional
de Gilvã estava ligada à poesia -era seu espaço
de realização
Os dedos atrofiados e a dificuldade de teclar no computador
eram apenas mais um obstáculo para Gilvã Mendes
executar o maior projeto -escrever um livro sobre como lhe
era difícil escrever um livro. Gilvã é
uma síntese de quase todas as marginalidades possíveis.
É negro, pobre, nordestino, mora num bairro contaminado
pelo tráfico de drogas e sofre de paralisia cerebral,
o que dificulta os movimentos do corpo e da fala. Para completar,
depende de uma cadeira de rodas para circular em Salvador,
com suas ladeiras. A deficiência fez com que, por muito
tempo, não tenha sido aceito numa escola. Aos 17 anos
de idade, estava na quinta série -obviamente de uma
escola pública.
O que já era difícil ficou ainda mais difícil.
Quando a primeira versão do livro ficou pronta, depois
de dois anos de trabalho e noites insones, os arquivos desapareceram
da memória do computador -um computador que, por várias
vezes, quebrou e demorava para ser consertado. Quase desistiu.
"Mas eu pensava que, se parasse, confirmaria tudo o que
diziam e pensavam sobre mim: que eu era inútil, vegetativo,
aleijado." Depois de quatro anos, o romance estava, enfim,
pronto. Mas ele percebeu que a realidade era muito mais forte
do que a ficção e preferiu reescrever tudo e
fazer um relato sobre o cotidiano de sua sobrevivência,
mesclando com suas poesias.
Com tantas limitações, a sobrevivência
emocional de Gilvã estava ligada à poesia -era
seu único espaço de realização.
Ser poeta é quase que divino, Homem, menino, Ser poeta
é viver, matar. Ser Deus, não como o todo- poderoso
Jeová.
Ser Deus de uma folha de papel, com uma caneta. Ser poeta
é ser pateta, ser ridículo, um palhaço,
ser um eterno apaixonado, um desgraçado, um abençoado.
Por não ser aceito na escola, agarrava-se à
leitura. "Enquanto meus irmãos apanhavam para
aprender as lições da escola, eu olhava os livros
feito um cão que deseja um frango de padaria."
Até que conseguiu ser matriculado, quando tinha 17
anos. "Senti vontade de raspar a cabeça, era como
se tivesse entrado na faculdade." Teve a chance de aprender
a lidar com a internet e aprender comunicação.
Aí nasceu a vontade de ser escritor, mas não
tinha ideia dos obstáculos -teria de enfrentar até
as ladeiras de Salvador. Uma coisa é ver o charme das
ladeiras pelos livros de Jorge Amado; outra, pela visão
de um cadeirante.
Quem foi que disse que sou aleijado? Quem foi que disse que
só vivo numa cadeira prostrado? Quem disse que eu não
conheço de Salvador os becos, as vielas, ladeiras e
botequins imundos, sambistas, malandros, putas, poetas e vagabundos.
No ano passado, Gilvã entrou na faculdade para estudar
letras -era um de seus grandes sonhos. Mas seu grande sonho
será visto apenas amanhã, quando sair da gráfica
o livro intitulado "Queria Brincar de Mudar Meu Destino".
Por trabalhar com educação, sempre tento descobrir
formas de motivar os alunos a aprenderem com mais profundidade,
especialmente o prazer da leitura e da expressão -o
que está cada vez mais difícil. Tive a possibilidade
de acompanhar, ao longe, a briga de Gilvã. Por isso,
quando me chegou às mãos, na semana passada,
a versão final, senti-me diante de um dos relatos mais
tocantes que já li de um estudante sobre a paixão
pela palavra.
PS - O título do livro é tirado de uma das poesias
de Gilvã. Coloquei neste
link mais poesias dele, além de trechos do livro,
que será lançado na Bienal do Livro de Salvador.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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