REFLEXÃO


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folha de s.paulo
30/07/2007

Canssei, cancei ou cansei?

Impossibilidade de premiar o mérito e punir o erro acaba por gerar falta de estímulo, é um pacto de mediocridade

Um vendedor da Livraria Cultura, na avenida Paulista, consegue tirar até R$ 4.500 mensais, com direito a assistência médica e odontológica, além de receber bolsa para estudar na faculdade. Dependendo do seu desempenho, ganha um bônus no final do ano -sem contar os descontos para a compra de livros. Mesmo assim, um dos principais problemas daquela livraria é atrair e manter empregados. "É desesperador", resume Pedro Herz, proprietário da livraria.

Desesperador porque os candidatos a vendedor apresentam falhas na sua formação, a tal ponto que muitos deles não perceberiam o erro no título desta coluna. Uma boa parte dos contratados não se adapta às exigências do trabalho, deixando o emprego na fase de experimentação. Resultado: vagas abertas há muitos meses, o que acaba por impactar a capacidade da livraria de elevar suas vendas.

Entendemos, em parte, como, num país de alto desemprego, especialmente entre jovens, não se preenchem vagas com um salário de R$ 4.500, vendo a resistência apresentada, na semana passada, à proposta de premiar os professores mais talentosos e esforçados.

Ao assumir, na semana passada, a Secretaria Estadual da Educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães, uma das maiores especialistas brasileiras em avaliação escolar, defendeu a idéia de que os melhores professores sejam premiados com base em uma série de indicadores.

Não falou em reduzir salários, mas apenas em dar um bônus a quem se esforce mais e obtenha resultados positivos em sala de aula.

A reação unânime dos sindicatos foi a condenação do sistema de mérito, por, supostamente, colocar nos professores a responsabilidade pelos problemas no aprendizado. Para sair do papel, a idéia da secretária enfrentará uma gigantesca mobilização, com reflexos políticos.

Para se ter uma idéia da reação, basta saber que os professores da rede municipal de São Paulo ganham, no final do ano, uma gratificação por desempenho baseada num só critério: assiduidade. Só que todos ganham o benefício, mesmo os que faltam cronicamente. Foi feita uma portaria determinando que, pelo menos, apenas os assíduos ganhassem a gratificação -a medida está mofando em alguma gaveta.

O caos educacional não é responsabilidade apenas dos professores. Tenho mostrado nesta coluna uma série de carências sociais que prejudicam o desempenho do aluno, como as doenças não tratadas. Os salários são baixos, e a infra-estrutura escolar, precária, mas a impossibilidade de premiar o mérito e punir o erro acaba por gerar falta de estímulo. Sela-se um pacto de mediocridade. Essa é uma das razões, entre várias, para entender por que apenas 5% dos alunos concluem o ensino médio público com o conhecimento adequado de língua portuguesa.

Vale a pena prestar atenção na cidade de Denver, localizado no Estado do Colorado (EUA), onde se desenvolveu por vários anos a experiência de dar um bônus aos melhores professores. Como se previa, o prefeito apanhou dos sindicatos, mas os resultados foram tão promissores que, desde o início deste ano, a prática se estendeu por toda a rede. E com o apoio não só dos professores mas também dos contribuintes, que toparam pagar mais impostos para bancar um fundo público destinado a conceder para o bônus.

Nem é preciso ir tão longe. Uma das mais férteis experiências educacionais (Procentro) do país são algumas escolas estaduais de ensino médio em Pernambuco, nas quais se oferece uma remuneração diferençada, com direito a bônus, aos professores, que são obrigados a cumprir metas. A gratificação pode chegar a R$ 2.500. O programa levou pancadas das mais variadas corporações, apoiadas pelo Ministério Público, mas sobreviveu à mudança de governo, graças aos inequívocos sinais de sucesso nos mais diferentes testes, entre os quais os vestibulares e as olimpíadas de matemática. Lá, estudam-se, por exemplo, clássicos das literaturas grega e romana, além de aprenderem com jogos criados no Porto Digital do Recife.

A tragédia de Congonhas foi o estopim para um movimento liderado pela OAB, batizado de "Cansei". O cansaço com o caos aéreo, com a violência, com a impunidade é provocado, em larga medida, pela incompetência oficial, na qual não impera o mérito, em gerir qualquer coisa.

O cansaço com essa sensação generalizada de vulnerabilidade tem a mesma raiz da dificuldade enfrentada por uma livraria que não preenche todas as vagas, mesmo oferecendo um salário que supera a média dos vencimentos de um professor universitário -e isso significa mais de quatro vezes a média de rendimento de um professor de ensino básico público brasileiro.

PS - Detalhei as experiências de Denver e das escolas experimentais de Pernambuco.



Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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