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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
31/07/2006
Uma vacina contra sanguessugas

Como Ribeirão Bonito criou mecanismos de fiscalização do poder público e até pôs um prefeito corrupto na cadeia


Se o país quiser inibir fraudes como as dos sanguessugas, terá de prestar atenção na experiência de Ribeirão Bonito, uma cidade de 12 mil habitantes no interior de São Paulo. Nessa experiência, desmonta-se uma ilusão -a de que se vai conseguir combater a corrupção e o desperdício, generalizados, apostando em governantes com discursos salvacionistas ou na eficiência da polícia e do Judiciário. Investigações feitas por amostragem pela Controladoria Geral da União revelam irregularidades em 90% dos convênios da União com os municípios. É uma profusão de descalabros: superfaturamento de preços, benefícios a familiares de prefeitos, baixa qualidade dos produtos e serviços adquiridos, obras pagas e não entregues. É comum ver computadores escolares encaixotados por anos; compram-se livros quando se poderia obtê-los gratuitamente nos programas oficiais de estímulo à leitura. E estamos falando apenas dos convênios federais.

É preciso ser desinformado para imaginar que uns poucos indivíduos na Polícia Federal, tribunais de contas ou Ministério Público conseguirão dar conta desse serviço. Na maioria das vezes, o combate à corrupção resvala mais para o show, amplificado pelos meios de comunicação, do que para a montagem de mecanismos eficazes para evitar a roubalheira. Por isso, sugiro atenção à microscópica fórmula de Ribeirão Bonito, onde tudo começou por causa de uma nostalgia -e virou uma cartilha contra a corrupção.

Nos seus tempos áureos, Ribeirão Bonito, de imigração italiana, beneficiava-se do café. Sua população, na época, contava com 25 mil moradores -mais que o dobro do atual número de habitantes. Além da agricultura, surgiam fábricas. Oferecia-se ali um bom nível de educação pública. Muitos saíram da cidade, entraram nas melhores faculdades e se tornaram profissionais de sucesso, respeitados nas suas áreas. Nunca mais voltaram a morar lá. Em 2000, alguns desses profissionais, gratos pela chance educacional que tiveram, começaram a se reunir para revitalizar Ribeirão Bonito, estimulando uma vocação econômica e preservando o patrimônio histórico. Juntaram-se aos moradores e criaram uma associação (Amarribo). Os planos mudaram de rumo. Perceberam que o prefeito vinha dando sinais de enriquecimento incompatível com sua renda. Um dos sinais era um carro de luxo que ele usava. Souberam que seu veículo era de um fornecedor de carne para as escolas. As merendeiras diziam, porém, que quase não havia carne na refeição dos alunos. Descobriu-se também que a prefeitura comprava a gasolina para abastecer a frota oficial numa cidade de Minas, bem longe dali. E por um preço mais caro do que a vendida no posto em frente à prefeitura. Revelou-se assim uma rede de falcatruas. Resolveu-se focar sua ação, naquele momento, no desvio de recursos. Não era uma batalha fácil. A população não estava mobilizada nem interessada; o prefeito controlava quase toda a Câmara e a imprensa.

Como o grupo de combatentes era composto de professores, contadores, comunicadores e advogados (um dos advogados é José Chizzotti, procurador aposentado do Estado), montou-se uma operação de guerra: 1) coletaram-se os indícios de desvio de dinheiro; 2) com base nessa coleta consistente, a polícia, o Ministério Público e o Judiciário foram acionados; 3) furando a barreira da mídia local, divulgaram-se os fatos por meio de panfletos e convocaram-se audiências públicas; 4) diante das evidências e da pressão popular, os vereadores foram sensibilizados para criar uma comissão de investigação na Câmara.

O prefeito perdeu o cargo e acabou na cadeia. O mais importante é que se criaram mecanismos permanentes de fiscalização que já resultaram, por exemplo, na redução e melhor aplicação de gastos públicos -a Câmara passou a usar apenas 1,5% do orçamento municipal, sendo que a lei permite até 8%. Desse embate, surgiu uma cartilha para ensinar os cidadãos o passo a passo na prevenção e no combate à corrupção.

P.S. - A fórmula de Ribeirão Bonito contra os sanguessugas não tem mágica. É composta por quatro ingredientes: 1) a qualificação educacional dos indivíduos; 2) a disposição de trabalhar em conjunto em cima de objetivos comuns; 3) sentir-se dono da coisa pública e fiscalizá-la permanentemente, o que exige uma noção de que cidadania é não só direitos mas deveres; 4) não esperar pelas autoridades para que sejam tomadas atitudes moralizadoras. Em qualquer comunidade que use essa receita, a corrupção provavelmente não acabará, mas será muito mais difícil roubar e ficar impune.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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