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mudança de vida
17/02/2005
Artista plástico decidiu viver nas ruas para ajudar excluídos da sociedade

Casa própria, reconhecimento profissional, apoio familiar, amigos e dinheiro no bolso. Esse pode parecer o sonho de vida da maior parte das pessoas. Imagine então largar tudo isso para viver entre os excluídos da sociedade, tendo como meta, apenas se dedicar à solidariedade e à caridade para o bem do próximo? Pode até parecer algo distante da realidade, em que as pessoas pensam mais em "ter do que ser", mas foi essa vida que o artista plástico Edson Luiz Medeiros, 44 anos, formado pela Faculdade de Belas Artes e vencedor de diversos prêmios na área, escolheu para si.

Quem quiser encontrá-lo, ou quem sabe até comprar um belo quadro do artista, não deve ir até o seu ateliê, na Vila Medeiros, bairro de classe média da zona Norte de São Paulo, onde nasceu e vive sua família. O endereço certo é outro bem diferente: calçada da rua Freire da Silva, no baixo Cambuci, Centro da cidade, um local deserto e muito escuro à noite. É neste espaço, entre um armário improvisado coberto com saco de lixo, colchonetes, cadeiras, espelho pregado na árvore e, é claro, muitas pinturas penduradas nos muros - tudo coberto com uma grande lona - é que ele passa dias e noites durante a semana com os carroceiros da cidade.

Essa grande transformação no seu dia-a-dia começou em 2003, quando o artista, que só conhecia o bairro quando passava de carro nas proximidades, decidiu olhar com mais cuidado para aquela realidade. "Quando eu comecei a caminhar a pé pelas ruas via, a cada 100 metros, um homem deitado no chão, como um saco de lixo. Foi aí que falei: 'Aqui é o meu lugar'. Eu queria saber a situação que eles passavam. Comecei a fazer amizade para saber como sobreviviam e fiz um pequeno levantamento. Descobri que aqui há 72% de áreas invadidas, prostituição infantil, muitas drogas e alcoólatras, e que a população é predominantemente de negros e nordestinos", se recorda.

Foi assim que Edson decidiu se tornar um deles, ou seja, se vestir, comer, trabalhar e viver entre eles para ganhar a confiança daquelas pessoas. "Eles têm que me ver assim para confiar em mim. Se eu viesse de terno e gravata, iriam achar que eu era advogado. Se eu estivesse de branco, seria médico. Preciso estar assim. É o exemplo mesmo. Mostrar de que é viável mudar de vida". No início, Edson conta que a tarefa não foi fácil, pois teve de enfrentar frio, fome e medo, uma vida que não conhecia. "Nunca pensei que iria deitar em plena avenida Lins de Vasconcelos [uma das ruas principais da região], tranqüilo e sossegado, sem qualquer um para me censurar. Ninguém olha pra você vestido assim".

Por isso, o artista procura mostrar aos carroceiros que passam por ali a importância de cuidar de si, até com as coisas básicas, como fazer a barba, cortar o cabelo e um simples banho. Edson faz tudo isso ali mesmo. Aprendeu até mesmo a cortar cabelo para poder ajudar os amigos. A caixa de primeiros socorros fica sempre por perto caso alguém precise. O artista providencia ainda roupas, sapatos e alimentos, com o apoio do Corpo de Bombeiros e das doações das pessoas que passam pela região. Quando eles não conseguem um local para tomar banho, já que o ferro velho da região não permite mais a entrada deles, entra em cena uma banheirinha de neném mesmo.

"É mais um trabalho de edificação deles. Eu dou valor para eles. Mostro como devem se comportar na sociedade. Quando eu vou conversar com os carroceiros me sinto como um soldado, que vai buscar lá onde ele está perdido. Coloco nas costas mesmo. O grande problema que eles enfrentam é a bebida. Estão sempre machucados internamente. Estão abandonados", conta.

Edson procura ainda orientar os carroceiros, principalmente quanto à venda dos materiais que eles recolhem na rua. Segundo o artista, o lixo da cidade é muito rico e eles encontram muitas peças, como máquinas de escrever antigas, livros, que poderiam ser vendidas para colecionadores e não para o ferro velho. Até capacete da Segunda Guerra Mundial com a marca de um tiro de raspão foi encontrado pelos carroceiros e Edson levou para um museu. O material, como papel, papelão e plástico é separado para ser reciclado. "Se eu conseguir fazer com que eles fiquem aqui realizando esse trabalho três, quatro horas é o tempo que eles não estão bebendo. E isso é muito bom", destaca Edson.

Já madeiras ou molduras de quadros recolhidos por eles, o artista compra para poder reciclar e fazer seus quadros. A calçada se torna ainda não somente o ateliê de Edson, mas uma sala de aula onde ele ensina desenho e pintura aos carroceiros. Não tem horário e nem dia marcado. Quando eles chegam, Edson pára o que estiver fazendo para as aulas. O artista trabalha, principalmente, com estampas para que eles possam colorir por cima e ter uma noção do desenho aos poucos, apesar dos novos alunos quererem saber de tudo logo no início.

Edson conta que procura ensinar logo os segredos desta arte, como a técnica de como colocar o pincel corretamente na tela, coisas que ele demorou anos para aprender. Ele afirma que, na verdade, os quadros são grandes chamarizes para que as pessoas possam ajudar também o trabalho que ele desenvolve. O artista vende as obras por preços de produção, cerca de R$30,00, e solicita alguma doação do comprador.

Os quadros produzidos pelos carroceiros também são vendidos no local, numa constante "mini-exposição". Pelos desenhos apresentados - muita paisagem, principalmente - é possível já perceber o gosto do artista. "Eu não gosto de abstracionismo porque é uma pintura interior do artista. Enquanto a paisagem, o mar, o auto-retrato, é diferente. Isso mostra a realidade. E a pintura é uma brincadeira. A vida é muito séria e com a pintura você pode errar. Você tem que se sentir bem", ressalta.

E é assim que Dona Maria, 64 anos, se sente ao pintar os quadros com a ajuda de Edson. "Eu tenho ´tapiado´ na verdade", se diverte, ressaltando que prefere pintar paisagens, mares e florestas. "O quadro significa alguma coisa que sai da cabeça da gente. E esses lugares fazem me lembrar muita coisa. Eu não gosto de cidade não. Gosto é de mato, rio", explica. A senhora, que é costureira profissional, se tornou carroceira há um ano para ajudar no orçamento da família enquanto não tem condições de concertar a sua máquina de costura. Ela conta que não pode gastar nada, pois quer comprar a sua moradia própria. Sorridente e com muita energia, Maria afirma que tem "muitos jovens por aí que não têm a sua disposição e força". Prova disso é que ela voltou a estudar - está na 6ª série do Ensino Fundamental - e faz aulas de informática. Além disso, ela ainda arranja um tempinho para fazer aulas reforço com Edson. "A gente precisa aprender. Quanto mais saber, melhor!".

Preconceito da sociedade
Mas, apesar do colorido constante dos quadros que contagia quem passa por esta calçada, as dificuldades também estão sempre presentes. À noite, eles se reúnem, cerca de 14 carroceiros, e dormem juntos no local. Edson conta que muitos vêm de longe em busca de segurança e porque sabem que ali não tem bagunça. O artista plástico, no entanto, raramente dorme, pois a cada hora chega mais um precisando de alguma ajuda.

Apesar das doações de alimentos, a comida também às vezes falta. Edson explica que nunca traz coisas da sua casa para o espaço, pois todos se mantêm somente com o trabalho que realizam. "Eu tenho que provar que é viável isso. Você ganha um pouco hoje, um pouco amanhã e não pode gastar tudo em cigarro, cachaça. Eles têm que aprender a guardar. Falo para eles que existe uma porta e ela vai se abrir", afirma. Edson acredita ainda que conta com uma proteção divina, pois sempre nos momentos difíceis, aparece uma ajuda.

"Outro dia eu levantei e disse: 'Estou com fome, Senhor!'. Logo em seguida um senhor de uma igreja buzinou o carro dizendo: ´Olha o lanche´. Falo que aqui tem anjos com espadas de ouro", se emociona. O desprezo da sociedade para com estas pessoas também torna todo o trabalho de Edson mais difícil. Ele acredita que os carroceiros são vistos como maloqueiros e são repudiados pela sociedade. "Se existe trânsito na rua, por exemplo, e tem uma carroça lá na frente, a culpa sempre é dela porque está atrapalhando. O carroceiro cata lixo e é considerado lixo. A sociedade quer que ele saia do centro, removendo como se fosse um saco de lixo", destaca o artista.

Prova disso foi uma experiência pela qual o grupo passou recentemente. Na rua havia muitos cachorros. Uma senhora passou pelo local com um carro importado e ofereceu alimento para eles, mas era ração para cachorro. "Eu falei: ´A gente dá as sobras das nossas comidas para os cachorros. Agora, se a senhora passou aqui e viu os cachorros, dá uma olhadinha melhor que a senhora vai ver homens, crianças e mulheres com frio, fome e medo. Existem seres humanos aqui. Apesar da sua boa intenção, quero comida para pessoas´", conta Edson. "Aí, ela pediu desculpas e começou a chorar. Tem gente que gasta mais para cuidar de um cachorro do que de uma pessoa que precisa".

Esse repúdio apontado por Edson da sociedade em relação aos carroceiros ele também já sentiu na pele. "Fui cortar cabelo outro dia e, quando marquei horário no local, eu estava de terno. No dia seguinte, quando cheguei lá, já estava todo sujo, com chinelo. Quando o cabeleireiro me viu entrar não acreditou que eu tinha marcado hora. Ele me olhou de cima em baixo. Eu falei: ´Não precisa mais. Vou embora´. Ele quis se desculpar, mas eu disse: ´O senhor viu primeiro as minhas vestes para depois ver a minha dignidade. As pessoas julgam as outras pelo modo de se vestir. A roupa não diz nada do que é a pessoa, sua personalidade, sua sensibilidade".

Mas estas dificuldades não desanimam o artista, que desde cedo já teve de enfrentar a falta de reconhecimento da sua família com a profissão. Ele conta que sempre foi visto como a "ovelha negra da família", já que os outros sete irmãos escolheram profissões como advocacia, pedagogia, e ele artes, vista como uma profissão que não traz o retorno necessário para se viver bem. Com 11 anos, Edson já dava seus primeiros passos como artista, quando fez uma escultura de madeira e recebeu um prêmio.

Aos 16 anos, já sabia que queria usar a sua profissão para ajudar outras pessoas e isso teria que ser feito na rua. Desde cedo se tornou voluntário, já que sua família é muito católica e desenvolve trabalhos sociais em diversos locais. Ainda hoje é voluntário nas Casas André Luiz, instituição que atende pessoas portadoras de deficiência mental, onde trabalha arte e música com as crianças. Para ele, é preciso fazer sempre algo e não adianta ficar esperando os governantes tomarem a iniciativa. "Amor sem ação não funciona. Você tem que fazer as coisas para as pessoas. A palavra oração já diz isso: é preciso agir", acredita.


Dedicação total
Por isso, muito antes de ter chegado ao Cambuci, Edson já havia realizado um trabalho similar, de dedicação total a uma causa. De 1993 até 1998, ele atuou junto aos moradores de duas favelas localizadas na cidade de Santo André, no ABC paulista, na região próxima à Faculdade de Medicina do ABC. Ali, ele ensinava as crianças, principalmente, a desenhar e pintar também, além de mobilizar os moradores para conseguirem melhores condições de vida. O grupo invadiu um terreno, construiu um campinho de futebol e, logo depois, conseguiu montar uma creche. Na época, Edson foi até ameaçado por traficantes do local, pois estes achavam que o artista estava atrapalhando os "negócios deles".

Depois disso, Edson foi a procura de um novo lugar para atuar e descobriu os carroceiros do Cambuci. Ele conta que muitas pessoas perguntam o porquê dessa atitude dele, já que sempre teve tudo em casa. A sua resposta é rápida: "O que eu estou almejando é esse lugar bonito que Deus prometeu para nós na Bíblia. Fazendo isso eu estou pedindo saúde para minha família". Claro que a família acha um tanto diferente a atitude de Edson, mas ele garante que os pais se orgulham disso. "Minha mãe fala que eu mato ela do coração!", se diverte, ressaltando que, assim, dá muito mais saudade das pessoas, já que ele volta para casa somente aos fins de semana.

E Edson não pretende parar com este trabalho tão cedo. Neste espaço, o artista só sai quando conseguir montar um Núcleo de Assistência aos carroceiros, com salas de reforço escolar, alfabetização, e outros serviços. A proposta é que eles tenham um lugar para tomar banho também e poderem participar de um processo de desintoxicação. Alguns empresários já estão interessados no projeto. Quando isso se realizar, o destino de Edson será a região dos bairros Casa Verde e Cachoeirinha, zona Norte de São Paulo, que também enfrentam grandes dificuldades. Quando completar 50 anos, aí sim Edson pretende ter uma vida um pouco mais tranqüila, mas sempre com dedicação a trabalhos voluntários. Ele quer voltar a ensinar arte às crianças.

"Eu moro no mundo, mas não sou do mundo. Eu aprendi a ouvir com o coração e não com o ouvido. Eu vejo as coisas longe. Afinal, a minha obra não é essa [apontando os quadros]. A minha obra é fazer a caridade. Enquanto houver uma pessoa com frio, fome e medo é de minha responsabilidade. Eu não quero saber se o prefeito faz, se meu professor faz, ou outro faz. Mas sou eu que tenho que fazer. O teste é comigo".

DANIELA PRÓSPERO
do site setor3

 
 
 

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