É
tão fácil aniquilar mentes brilhantes
Passei
a semana inteira provocado por algumas linhas do artigo do
médico Drauzio Varella, intitulado "Raízes
biológicas da violência" e publicado nesta
Folha. Ao analisar os impactos da violência no cérebro
com base nas recentes descobertas da neurociência, ele
afirmou o que aconteceria se alguém tapasse durante
um mês o olho de uma criança recém-nascida:
aquele olho jamais teria visão.
A falta
de estímulos luminosos naquele estágio de vida
impede que os neurônios formem conexões indispensáveis
para a visão. Essa é a imagem que melhor ilustra
o fato, hoje inquestionável, de que a fase de vida
dos zero aos três anos é decisiva para o futuro
de um indivíduo e interfere, no mínimo, na sua
capacidade de aprendizado e, por tabela, na sua produtividade
profissional.
Traduzindo:
assim como precisa da luz para formar a visão, a criança
precisa também de brincadeiras, de jogos educativos,
de conversas e, mais tarde, de ouvir histórias que
a ajudem a se preparar, até mesmo neurologicamente,
para aprender -sem esses estímulos, ela vai carregar
para sempre uma "deficiência visual", mesmo
que os olhos funcionem perfeitamente.
Esse é
um dos fatores, entre tantos, que ajudam a entender uma pesquisa
divulgada na semana passada (Indicador de Alfabetismo Funcional),
baseada em 2.000 entrevistas realizadas em todo o país:
entre os brasileiros de 15 a 64 anos, apenas 24% conseguem
ler e entender um livro. Encontrou-se tal resultado após
a aplicação de testes com questões relacionadas
a um texto submetido aos entrevistados. Conclusão:
o indivíduo vê, mas não enxerga.
A cadeia
da ignorância no Brasil começa literalmente no
berço -e só a ignorância política
explica por que a educação infantil (creche
e pré-escola) não está no topo da agenda
nacional nem é um assunto mencionado por nenhum (vamos
repetir, nenhum) candidato a governador ou a presidente.
Vamos
aos fatos.
De acordo
com dados oficiais, cerca de 30% das cidades brasileiras não
têm creches; as médias nas regiões Norte
e Nordeste são evidentemente mais elevadas. Das creches
existentes, apenas 24% têm fraldários. Oficinas
de arte e música, recursos pedagógicos indispensáveis,
são oferecidas por só 15% dos estabelecimentos.
"Existe
a noção absurda de que as crianças dessa
faixa etária requerem apenas cuidados com a saúde,
com a higiene e com a educação", comenta
Vital Didoret, especialista em educação infantil
e integrante da Organização Mundial para a Educação
Pré-Escolar.
Isso se
explica, mais uma vez, pela desinformação. Dados
do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais):
só 11,3% dos profissionais de creches públicas
têm diploma de ensino superior. Na pré-escola
(frequentada por crianças de quatro a seis anos de
idade), a situação é melhor, mas apenas
ligeiramente melhor: são 24% os profissionais de nível
superior.
Foram
matriculados nas redes públicas e particulares de educação
infantil de todo o país 6 milhões de crianças.
Dessas matrículas, só 18% foram para as creches
-justamente para esses estabelecimentos que deveriam cuidar
daquela fase neurologicamente relevante, de zero a três
anos de idade. "As demandas por creches são muito
altas e não existe atendimento suficiente, principalmente
nas regiões em que grande parte das mulheres está
no mercado de trabalho", diz Vital.
Nem precisamos
ir muito longe geograficamente. Tomemos o caso da cidade de
São Paulo. De acordo com Vital, 200 mil crianças
estariam sem creche. Muitas mães nem sequer procuram
pelo serviço, porque sabem que não existem vagas.
O que
temos é o seguinte: é pouca gente atendida em
educação infantil, muito menos nas creches.
Quem é atendido é, no geral, mal atendido: as
instalações são precárias, os
profissionais são despreparados, falta material pedagógico.
É o tal olho tapado.
Agregue-se
a isso o fato de as famílias das crianças de
baixa renda terem baixo repertório cultural, não
terem o hábito de leitura -até porque, como
mostrou a pesquisa da semana passada, sabem ler, mas não
entendem o que lêem. Com frequência, crianças
pequenas cuidam em casa das crianças ainda menores.
Da educação
pré-escolar, o estudante sem recursos vai para um ensino
público que está longe, muito longe, de resolver
os buracos que já vieram do berço. Na maioria
das vezes, consegue até mesmo ampliá-los.
Não
é preciso ter uma mente brilhante para perceber que
a miséria e a desigualdade social se reproduzem na
oportunidade que alguém, ao nascer, tem ou não
de "ver" novas perspectivas.
Como a cegueira intelectual não é privilégio
dos mais pobres, o tema da educação de zero
a seis anos ainda está na escuridão.
PS - Para
quem quiser aprofundar-se no assunto, existe na página
do Aprendiz um dossiê sobre a educação
pré-escolar: www.aprendiz.org.br.
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