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Fome
de marketing
Nas conversas
reservadas com assessores de Lula, o senador eleito Cristovam
Buarque (PT-DF), criador da bolsa-escola no Brasil, tem alertado
que a distribuição de cupons de alimentação
para combater a fome é um "retrocesso". Nos
bastidores, ele vem tentando sensibilizar o partido para evitar
a tendência assistencial do programa Fome Zero, apresentado,
na semana passada, como um dos selos distintivos da primeira
fase do governo Lula.
Na opinião
de Cristovam, o cupom é um retrocesso às políticas
inovadoras de renda mínima lançadas pelo próprio
PT e, mais tarde, adotadas pelo governo federal, nas quais
se exige uma contrapartida do beneficiário do recurso
-contrapartida significa, por exemplo, manter os filhos na
escola, tirá-los do trabalho ou fazer que a mulher
grávida vá regularmente ao médico.
Na semana
passada, os cupons foram criticados por técnicos do
Ipea, onde se realizam os mais profundos estudos sobre a miséria
no Brasil, pela médica Zilda Arns, coordenadora da
Pastoral da Criança, responsável por um dos
mais notáveis programas mundiais de combate à
desnutrição, e pelo senador Eduardo Suplicy,
disseminador, no Brasil, do conceito de renda mínima.
Não são o que se poderia classificar de raivosos
oposicionistas ao novo governo -trata-se de gente experimentada
em políticas contra a pobreza.
Argumenta-se,
entre outras coisas, que os cupons alimentam uma burocracia,
que estimulam, como no passado, desvios, que restringem a
capacidade dos mais pobres de usar o dinheiro conforme sua
própria decisão, de acordo com as suas necessidades,
e que não reforçam o foco de uma política
social, já fragmentada e dispersa. Tudo isso, em essência,
significa desperdício.
A ofensiva
contra a falta de alimentos poderia ser bem mais simples do
que a montagem de uma burocracia para administrar os cupons:
bastaria aperfeiçoar os programas de renda mínima,
fazendo-os chegar ainda mais longe e até melhorando
o valor dos benefícios. Se o valor da bolsa-escola,
hoje de R$ 15, fosse elevado para R$ 30, já haveria
impacto no combate à desnutrição, uma
vez que a renda familiar aumentaria.
Teria
ainda mais consistência uma articulação
de todos os programas de renda mínima num cadastro
único que englobasse os âmbitos federal, estadual
e municipal, o que evitaria gente batendo cabeça.
São
argumentos tão obviamente razoáveis que fazem
surgir duas hipóteses: os técnicos do PT envolvidos
no programa Fome Zero estão desinformados sobre políticas
sociais (algo em que não creio), ou Lula está
preocupado em lançar um programa de olho na imagem
de seu governo. Ou seja, fome de marketing.
Essa fome
de marketing, como se viu na semana passada, é mais
do que compreensível -Lula precisa mostrar uma cara
social, mas, ao mesmo tempo, cuidar das finanças públicas.
Agora
que saiu do palanque e que a euforia da vitória começa
a desaparecer, vão surgindo os números e as
cobranças. O PT sempre foi duro na cobrança
de uma salário mínimo maior. Se oferecer um
salário mínimo de R$ 240, o impacto anual nos
cofres federais será de R$ 4,2 bilhões. Pouco
ou quase nada haverá para satisfazer os funcionários
públicos, uma das bases de sustentação
do partido, com seus salários há anos pisoteados.
De um
lado, está a necessidade de garantir acordos internacionais
e de economizar recursos e, de outro, as demandas por mais
empregos e por investimentos em saúde e em educação.
Em 2003, a economia não crescerá o suficiente
para diminuir o estoque de desemprego -principal tema da campanha
presidencial.
Vai ocorrer
o que as pessoas que prestam mais atenção aos
números do que aos discursos de palanque já
sabiam: a inevitável frustração. Uma
frustração que viria mesmo com uma vitória
de José Serra. Pior para Lula, que prometeu mudar mais
depressa.
O programa
Fome Zero é obviamente uma política assistencialista
obsoleta, mas, bem trabalhada por um marqueteiro do tipo Duda
Mendonça, pode tornar-se uma espécie de selo
de preocupação com os excluídos -afinal,
é capaz de atingir milhões de brasileiros, que
vão ver no cupom mais dinheiro no bolso.
Talvez
até seja a única possibilidade para marcar presença
no eleitorado mais pobre, numa ação de curto
prazo e com verba disponível no Orçamento -mas,
certamente, não é a mais eficiente do ponto
de vista técnico.
P.S.-
A maturidade do PT em termos econômicos trouxe as melhores
notícias da semana e mostrou como eram histéricas
as previsões sobre fuga de capitais -se vai continuar
assim é, claro, uma incógnita. Fala-se em caos
e em fuga de dinheiro, mas o que vimos foi a queda do dólar
e do risco-Brasil, além da subida da Bolsa de Valores.
(Folha
de S. Paulo - 03/11/02)
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