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Aparece inteligência numa cidade burra

Um dos mais badalados personagens culturais de São Paulo, o artista plástico baiano Emanoel Araújo decidiu neste ano morar em um apartamento dúplex numa esquina da avenida São Luiz, região deteriorada do centro da cidade. O local, que, no passado, foi um cenário sofisticado, depois foi tomado por prostitutas, camelôs, drogados, mendigos e desempregados.

Nas imediações do apartamento do artista plástico, há pouco mais de três décadas, passavam ou viviam outros baianos que fizeram história na cidade: Gilberto Gil e Caetano Veloso, que fez poesia da esquina da Ipiranga com a São João. "Viver no centro é sentir a pulsação de uma cidade", conta Emanoel, agora vivendo satisfeito a poucos metros daquela esquina, inspiração dessa espécie de hino alternativo paulistano que é a canção "Sampa".

Esse minúsculo negócio imobiliário, insignificante, pode ser o prenúncio de um movimento de vanguarda, uma reação inteligente à barbárie. A barbárie paulistana não é um problema provinciano, mas nacional, dada a importância política, econômica, financeira e cultural de São Paulo -nossa porta para a globalização.

É muito fácil falar da óbvia burrice urbana paulistana, da violência, do trânsito, da poluição visual e por aí vai. Mais difícil é perceber que a capacidade de suportar o caos talvez já tenha chegado ao limite e que é possível que esteja em andamento uma reação cujo intuito é tornar a cidade menos selvagem.

Não é apenas a mudança de casa de Emanoel que reforça minha convicção de que, mais cedo ou mais tarde, São Paulo vai passar por um processo de renascimento semelhante ao de Nova York. Na semana passada, foi apresentada a reforma do prédio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que, símbolo da selvageria política, ainda persiste na também deteriorada zona do crack, a chamada "cracolândia". A região notabilizou-se, no começo do século passado, pela riqueza oriunda do café e, na década de 90, pela pobreza advinda do crack; ali se traficava quase livremente, com conivência da polícia.

Da burrice da repressão, nasce no prédio um museu, dirigido pelo mesmo Emanoel Araújo, onde será contada, pela arte, a aventura do povo brasileiro. Lá estão arquivos que retratam a perseguição à inteligência não só de uma cidade mas de um país: prontuários de Caetano, Gil, Monteiro Lobato, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, d. Paulo Evaristo Arns, Lula, Serra e Fernando Henrique Cardoso, entre muitos outros.

Vítima da decadência da indústria, São Paulo vai se redefinir pelo setor de serviços - e neste terá destaque a cultura. Toda uma região começa a ser remodelada pelas artes.
Na frente do prédio do Dops, haverá uma escola superior de música. Nas imediações, espaços para grupos de balé e a sala Júlio Prestes, destinada a concertos. A estação da Luz vai se converter num memorial da língua portuguesa -defronte da Pinacoteca do Estado, já reformada, e de uma praça remodelada.

Aquele ponto será o mais importante entroncamento de todas as linhas de metrô da cidade. Urbanistas montam projetos para a reocupação da orla ferroviária, abandonada com a decadência industrial.

Aparecem por todos os lados projetos em parceria do governo com a iniciativa privada. Na avenida São Luiz, de Emanoel, faz-se de uma degradada biblioteca (a Mário de Andrade) um lugar de troca de idéias, que atrai cursos e palestras da elite intelectual. O Sesc e os Correios estão patrocinando obras caras de reforma de prédios para transformá-los em pólos de produção artística -exatamente como fez o Banco do Brasil no núcleo histórico, para onde foi a nova sede da prefeitura, ao lado do Masp, cuja entrada foi revitalizada por Paulo Mendes da Rocha, uma das referências da arquitetura brasileira.

Toda uma rua (a General Jardim), onde, aliás, trabalha Paulo Mendes da Rocha, virou pólo de urbanistas e arquitetos -com faculdade, centros de estudos e escritórios particulares. Nenhum outro lugar concentra tanta criatividade de pensamento sobre a possibilidade de criar uma cidade mais acolhedora e inteligente.

A poucos metros dali, um prédio abandonado, onde está um cinema que já foi chique (Olido), receberá a Secretaria Municipal da Cultura, prestando-se a sede de uma orquestra e de grupos de balé e de canto.

Pelo tamanho do desafio, a aventura de recuperar uma cidade como São Paulo, um sonho ainda distante, é a aventura de reconstruir um país. Em nenhum outro lugar a nação, na sua diversidade, apresenta-se tão sintética, com suas burrices e inteligências.

Não há hipótese de o Brasil dar certo e São Paulo fracassar: falta de inteligência é nenhum candidato expressar em suas preocupações a obviedade de que o governo federal deve ter uma política especial para as regiões metropolitanas no geral e para São Paulo em particular.

PS - Sei que, a esta altura, muitos leitores estão debochando da minha visão sobre São Paulo, considerando-a de um bairrismo rasteiro ou de um otimismo alucinado. Claro que dependemos de uma política de crescimento econômico combinada com investimentos sociais.

Minha confiança não é depositada nos governantes, mas no capital humano -na criatividade, hoje acuada, da comunidade.

A verdade é que o medo fez de São Paulo um grande Dops, aprisionando inteligências. Mas mesmo um Dops pode, um dia, virar um centro de beleza

 
 
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