Olivetto
na revolução dos bichos
Em tom
de desafio, o presidente Fernando Henrique Cardoso cobrou
do Congresso, na quinta-feira passada, a aprovação
imediata de leis que reduzam a impunidade dos criminosos no
Brasil. Garante que, se os deputados e senadores quiserem,
em apenas uma semana as medidas já estarão aprovadas.
Por todos
os lados, velhas propostas -algumas delas se arrastando há
décadas- ganharam sentido de emergência. Passou
a ser "para ontem" a mudança do Código
de Processo Penal, de modo a dificultar aos delinquentes o
uso de brechas na lei que lhes permitem sair da cadeia, a
unificação das polícias Civil e Militar
e o desenvolvimento de núcleos de inteligência
destinados a enfrentar a violência, além da ampliação
do policiamento ostensivo e comunitário.
A pergunta
mais importante é a seguinte: será que atingimos
tamanho grau de saturação que o país
vai enfrentar o crime como enfrentou a inflação?
Ou trata-se de mais um desses surtos de emergência provocados
por fatos de alta repercussão na mídia, como
o sequestro do publicitário Washington Olivetto e o
assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel?
Daqui
a pouco tempo, o Brasil estará mergulhado na Copa do
Mundo, e os políticos, nas eleições.
Haverá o mesmo fervor para exigir mudanças do
Congresso e força para enfrentar o corporativismo das
polícias?
Menos
pelo "reality show" da TV Globo -o "Big Brother"-
e mais pelo pânico gerado pela sensação
de que em cada esquina existe alguém nos espionando,
pronto para atacar, o livro de 2002 é "1984",
de George Orwell.
Não
bastasse os mais abonados instalarem sistemas de controle
conectados por satélite em seus automóveis,
fala-se, com entusiasmo, de uma nova invenção
-uma minúscula peça que, devidamente implantada
nos indivíduos, serve de localizador. É o fim
total e inapelável de qualquer chance de solidão.
Na semana
passada, a nação viu dois homens serem tratados
e enjaulados como animais. O cubículo-cativeiro de
Washington Olivetto, sem nenhuma luz natural, acompanhado
durante as 24 horas do dia por uma câmera, era menor
do que uma jaula. Por uma perversa ironia, os sequestradores
ofereceram como presente ao publicitário o livro "1984".
Foi encontrado
também um empresário de 75 anos acorrentado
e algemado pelos seus sequestradores, numa situação
que seria constrangedora até para um bicho.
Atordoado
com a repercussão negativa dos fatos -e com a possibilidade
de complicar-se nas eleições-, o governador
Geraldo Alckmin pressionou a polícia para que mostrasse
serviço, revirando favelas e bairros periféricos
atrás das quadrilhas de sequestradores.
Atirou no que viu e também acabou acertando no que
não viu.
Deu a impressão de que, quando quer, a polícia
consegue ser eficiente. Até quando vai continuar esse
empenho? Será que isso vai depender da notoriedade
das vítimas?
A verdade
é simples: apenas quando a elite econômica se
sentiu totalmente desamparada e paranóica a segurança
subiu ao topo da agenda de resoluções dos governantes.
Afinal,
de que adianta ter dinheiro e viver como se fosse um fugitivo
ou um prisioneiro?
Por questões
absolutamente pragmáticas do tipo "não
adianta ganhar dinheiro e viver escondido", a perda de
investimentos em regiões que não ofereçam
um mínimo de tranquilidade e a difícil sustentação
eleitoral de governadores que não acalmem as ruas,
há uma razoável chance de apostar na idéia
de que não se trata de um surto -a cobrança
permanente de eficiência policial veio mesmo para ficar.
E, assim
como os índices de inflação eram acompanhados
mês a mês e destruíam reputações,
os números da violência serão usados,
certa ou erradamente, para dizer se o governador é
bom ou ruim.
Derrotou-se
a inflação pela simples razão de que
se percebeu que aquela situação de descontrole
da moeda não interessava a quase ninguém; foram
necessários muitos anos para que se atingisse tal estado
de saturação.
É
a mesma sensação de saturação
a que já ocorre em relação à violência.
A elite conseguiu, até agora, privatizar a educação
dos filhos e o sistema de saúde; na falta de boas escolas
e de hospitais públicos, paga pelo serviço.
Tenta agora privatizar a segurança -mas nunca vai conseguir
saber se os agentes que a protegem não estão
ligados a um grupo de delinquentes.
A nação
se conscientizou, no passado, de que, com a inflação
em disparada, a sociedade deixava de ser funcional -assim
como a violência está tirando a funcionalidade
das regiões metropolitanas e das grandes cidades ao
comprometer sua elite dirigente.
Do mesmo
jeito que a inflação gerou embustes e paliativos,
com seus vários congelamentos artificiais, os políticos
-podem apostar- vão apresentar ilusões para
acalmar os eleitores, ações de curta duração.
Mas logo
se verá que elas não funcionam. Muito esforço
vai ser despendido -como na batalha contra a inflação-
para que não precisemos viver acuados como bichos.
É o preço que se paga pela má distribuição
de renda, pela baixa escolaridade e pela falta de investimentos
sociais. Só alguém com o raciocínio animalesco
pode achar que a polícia consegue lidar sozinha com
tantos desafios ao mesmo tempo.
PS - Além
de "1984", outro livro de George Orwell me vem à
cabeça: "A Revolução dos Bichos",
alegoria sobre o poder, em que animais se rebelam contra a
perversidade daqueles que, pelo medo, dominam a sociedade.
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