Orelhas
decepadas
Pesquisa
do Datafolha divulgada hoje mostra, com números, que
a sensação de pânico e o desalento na
cidade de São Paulo já fazem os habitantes se
sentirem muito próximos do fundo do poço - se
é que já não chegaram lá.
A percepção
da selvageria é generalizada, resvalando nas fronteiras
da paranóia e da histeria. A maioria dos entrevistados
(53%) imagina-se provável alvo de sequestro. E nada
menos do que 86% deles suspeitam que, a qualquer momento,
possam ser assaltados ou agredidos.
Num redesenho
espacial feito pelo medo, 68% dos moradores de São
Paulo condicionam seus deslocamentos à noite ao risco
de ataques de marginais; 74% evitam, sempre que possível,
ir a certos pontos da cidade. É como se, pouco a pouco,
riscassem do mapa certos territórios, relegando-os
ao círculo vicioso do abandono.
O fundamento
básico, inapelável, de tanto medo é o
fato de que uma grande quantidade de pessoas já foi
assaltada, roubada ou agredida. Como cada atingido tem parentes
próximos, vivendo na mesma casa, conclui-se, sem nenhum
exagero, que todos são direta ou indiretamente afetados
pela violência.
Nesse
ambiente de "salve-se quem puder", a população
prefere a ilusão das soluções aparentemente
fáceis: pesquisa feita em São Paulo em junho
de 2000 mostrou que 44% estavam a favor da pena de morte.
É a ponta de um sentimento que, no fundo, nutre a crença
na eficácia do extermínio. Mal sabem essas pessoas
que não existe comprovação científica
dos efeitos da pena de morte sobre a redução
da criminalidade.
Tais números
informam, cruamente, que a população se percebe
abandonada, refém de criminosos, descrente da ação
do poder público. Não se vê como uma comunidade,
mas como um ajuntamento de seres encurralados.
Uma história
do Brasil ainda por ser escrita terá de registrar,
com destaque, que, no início do terceiro milênio,
a principal cidade da nação estava imersa em
pânico por causa de uma epidemia de violência.
Orelhas decepadas talvez sejam os melhores ícones desse
período.
Na semana
passada, a fama de capital do sequestro, recentemente adquirida
pela cidade de São Paulo, ganhou as páginas
do jornal "The New York Times". A reportagem relatou
o caso de um cirurgião plástico que fez várias
operações em homens e mulheres que tiveram partes
de suas orelhas decepadas por sequestradores e enviadas às
suas famílias. Chegamos ao ponto, como ocorreu em Campinas,
de uma mulher ter sido libertada e, em seguida, assassinada
pelas costas em frente à sua própria casa. A
imagem que sai afetada não é só a da
cidade, mas a de todo o país.
A verdade
é simples: ou se vira esse jogo agora ou, em breve,
o debate será vencido pelos políticos que apresentam
só a pancadaria como solução. Isso se
não prosperarem esquadrões da morte, com seus
integrantes logo transformados em heróis populares.
Aí teremos uma guerra de selvagens contra selvagens
e, como sempre acontece, bandidos e mocinhos acabam trocando
de papéis.
Na era
do marketing político, eleição não
dá ensejo a idéias complexas; propostas são
quase "slogans".
Uma proposta
com um mínimo de consistência deve levar em conta,
além das evidentes melhorias da polícia e dos
programas sociais para reduzir a pobreza, profundas reformas
urbanas, mudanças que demoram para surtir efeito.
Um exemplo.
Existem dentro de São Paulo 135 quilômetros de
linha férrea, que, tempos atrás, escoaram a
riqueza da industrialização. As regiões
em torno desse percurso transformaram-se em áreas degradadas,
com terrenos vazios e galpões abandonados.
Urbanistas
alertam para uma monumental obviedade: em vez de levar mais
moradias para as periferias, verdadeiros mananciais de violência
- devido, entre outros fatores, à falta de infra-estrutura-,
a população deveria repovoar a orla ferroviária.
Calcula-se que até 2 milhões de pessoas pudessem
ser absorvidas por um projeto desses. Fácil?
Não,
mas viável. Técnicos renomados garantem: basta
os governos federal (dono de muitos daqueles terrenos), estadual
e municipal decidirem fazer da região um espaço
de moradia, trabalho e lazer, com centros de convivência.
Isso estimularia a construção de conjuntos habitacionais
e a instalação de indústrias. Note-se
que já há transporte público - trem e
metrô -, numa cidade que vive congestionada. É
como se a nação ocupasse uma nova fronteira.
Urbanistas
apontam a conquista dessa nova fronteira como a melhor solução
para integrar a cidade. Mas o que acontece? O governo federal,
de olho no caixa, quer vender os terrenos aos primeiros compradores
que aparecerem, o governo estadual não colocou esse
projeto em sua agenda e a prefeitura não tem força
para tocar sozinha a idéia.
Fala-se
tanto - e com razão - em unificar as polícias
Civil e Militar para melhorar a segurança. Se não
se unificarem as ações federais, estaduais e
federais, São Paulo nunca será levada, de fato,
a sério.
PS - Uma
pista para tentar entender a complexidade e a riqueza da cidade
está na leitura de duas reportagens. Misturem-se o
texto do jornal "The New York Times" -com suas orelhas
decepadas, no qual somos equiparados à Colômbia-
com a reportagem da mais recente edição da revista
francesa "L'Officiel", que retratou o mundo efervescente
da moda, da gastronomia, da cultura e da arquitetura de São
Paulo. Na visão da revista, encontra-se em São
Paulo a vitalidade de Milão, a badalação
sofisticada de Nova York e a elegância de Paris.
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