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Fadas, morcegos e esmeraldas

Na terça-feira passada, estive, de manhã, numa cadeia e, à tarde, no auditório de um banco internacional, oscilando entre uma história de terror e um conto de fadas.

Visitei, pela manhã, uma delegacia de polícia em São Paulo, onde se criam "homens-morcego" . Espremidos em celas minúsculas, eles amarram-se às grades, com suas redes.

O corpo retorcido, suspenso e próximo do teto sugeriu, entre os presos, a imagem do morcego e batizou a tenebrosa habilidade para dormir, disseminada em distritos.

Aqueles corpos, quase indistintos pela aglomeração, estavam imersos num calor fétido que exalava urina, fezes e desinfetante. Compunham o cenário de uma história de terror em que se mesclam e se confundem as fronteiras entre os seres humanos e os animais.

***

Poucas horas depois daquelas cenas, testemunharia um conto de fadas num ambiente silencioso, refrigerado, rodeado de obras de arte -- estavam dispostos ali quadros de Portinari.

Executivos de um banco internacional, entre os quais o presidente, ouviam uma palestra sobre estratégias de sobrevivência em situações-limite. A palestrante veio exatamente do mundo que produzia "homens-morcego".

Até pouco tempo, ela andava suja na frente daquele mesmo banco e jamais conseguiria transpor suas portas. Viciada, esquecia-se, por semanas, de tomar banho. Naquelas ruas, onde morava, ela assaltava e traficava. Perseguida, acabou presa por várias vezes e encaminhada para incubadoras de marginais.

Ela relatou, para a platéia silenciosa, o que viveu nas ruas, como deixou a droga, abandonou o crime e se tornou escritora. E onde foi buscar motivação, numa pedagogia da possibilidade, em que encontrou as forças que fazem alguém, apesar de tudo e todos, superar-se.

A qualquer um comoveria ver a mutação de Esmeralda Ortiz, abrindo as portas que separavam a prisão do palco. Para mim, a emoção foi ainda mais especial.

Neste ano, tive a chance e acompanhar o processo de investigação e criação de Esmeralda, que resultou no livro 'Por que Não Dancei'. Não sei se, em algum outro momento de minha vida, aprendi tanta coisa em tão pouco tempo sobre a engenharia da alma humana e sobre a pedagogia da possibilidade.

***

O contraste entre o conto de fadas e a história de terror ensina o que deixamos de ser por falta de oportunidades. Ou o que podemos ser, apesar de todas as impossibilidades.

Neste ano que se encerra, vimos boas notícias: a economia se expandiu, o desemprego caiu, a inflação permaneceu baixa. Anunciam-se bilionários investimentos, em meio a previsões de que entramos num círculo virtuoso de crescimento.

A eleição para prefeitos trouxe para a agenda nacional a temática urbana, numa ordenação correta de prioridades. O IBGE informou, na semana passada, que aumentou ainda mais o nível de urbanização, agora em torno de 82%. Melhorar a qualidade de vida é, portanto, melhorar as cidades.

Resultado da urbanização com melhores níveis de escolaridade, o crescimento populacional, segundo o IBGE, continua a cair. Tradução: menos miséria.

Boas notícias, mas não se deixe iludir. Ainda é muito pequena a parcela que consegue usufruir dessas melhorias e pular os obstáculos provocados pela falta de educação e cultura.

***

A lógica brasileira é a lógica da exclusão. Quanto mais nos desenvolvemos e absorvemos novas tecnologias, mais condenamos à marginalidade centenas de milhares de jovens, aqueles que vão alimentar as manchetes de crimes e abarrotar as já superlotadas delegacias.

Daí se entende melhor, por exemplo, a gravidade da declaração, semana passada, dos futuros responsáveis pelas finanças do município de São Paulo.

Apresentando francamente os números (e abalando promessas eleitorais), João Sayad informou que quase não vai haver dinheiro para investimentos sociais.

O custo da incompetência social de uma nação, fomentada por governos que desperdiçam recursos, pode ser aferido não só por números frios, tabelas ou estatísticas mas também pela bifurcação que faz de uns homens-morcegos e de outros Esmeraldas. Pessoas aptas a criar -- a escrever livros, a compor músicas, a realizar pinturas, enfim, seres humanos capazes de construir tornam-se, pela falta de oportunidade, inúteis.

Cometem violência e se violentam; matam e se matam. Superlotam as cadeias. Para nos protegermos deles, montamos nossas próprias prisões.

No ritual de final de ano, muitas vezes piegas e superficial, costumamos dizer o que somos e o que poderíamos ser ou o que gostaríamos de ser.

O Brasil insiste em ser o Brasil dos homens-morcegos, inviabilizados dentro e fora da celas. São milhões de brasileiros presos à crônica impossibilidade, como se estivessem mesmo atados a grades imaginárias.

A meta nacional é tão óbvia quanto antiga, repetida ano a ano, o que, por si só, já revela nossa indigência: dar aos candidatos a homens-morcegos a chance de se tornarem Esmeraldas.

O maior desperdício brasileiro é o desperdício de talentos.

***

PS- Mais um vira-lata salvou, como aconteceu semana passada, uma criança contra um pit bull. Notável exemplo do que significa a pedagogia da possibilidade.

 

 
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