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Empresas
notam prejuízo interno decorrente das drogas
As empresas
brasileiras começam, ainda que tardiamente, a prestar atenção
em funcionários dependentes de álcool e drogas. A
dependência traz prejuízos que vão de baixa
produtividade a acidentes de trabalho.
Algumas companhias
adotam testes de urina para detectar a situação de
seus funcionários. Um projeto de lei da Secretaria Nacional
Antidrogas, dirigida pelo general Alberto Cardoso, propõe
que o teste seja obrigatório em empresas cujas atividades
causem impacto na segurança pública.
Apesar da tensão
no ambiente profissional não determinar a dependência
na maioria dos casos, ela age como um facilitador.
Por se tratar
de uma questão particular, nem sempre é possível
detectar a dependência a olho nu. Porém, quando aflora,
pode significar o fim da linha para um profissional promissor.
(Exame)
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Flagelo
corporativo
Quando o chefe
o chamava à sala e lhe pedia para tomar notas, Paulo Roberto
dizia que não era preciso, porque guardava tudo na cabeça.
Mas, ao sair da sala, já esquecera o que ouvira minutos antes.
À secretária que trazia papéis para assinar,
fazia um gesto para deixá-los em cima da mesa. Não
podia permitir que vissem suas mãos tremendo. Como diretor
de vendas de uma multinacional francesa do setor de embalagens,
Paulo Roberto era um malabarista. Às segundas-feiras, mal
conseguia levantar as pálpebras, de ressaca. Estava ficando
cada vez menos produtivo e mais irresponsável. Fugia dos
compromissos, esquecia tudo, ignorava os vendedores que deveria
controlar e ainda dava escapadas à tarde. Mas conhecia o
ofício, era articulado e criativo. Enganar a empresa era
fácil. Difícil era enganar o sofrimento. Todo dia,
começando de manhã cedo, Paulo Roberto bebia uma garrafa
de vodca. E penava para manter as aparências.
É verdade
que nunca o apanharam. Em 1984, quando foi demitido ("eles
sabiam que eu estava mal, mas não sabiam o que estava acontecendo",
diz), recebeu como compensação a representação
da companhia no Rio de Janeiro e ganhou dinheiro. "Foram 24
anos de empresa. Os últimos 10, de pura dissimulação
e angústia. Jamais vi um médico ou um programa de
saúde sobre alcoolismo. Havia muitos alcoólatras entre
os 1 500 funcionários. Mas o problema não era da empresa,
era meu", afirma.
A partir de
1984, porém, o vício fugiu do controle. Paulo Roberto
passou por vários empregos temporários ("eu me
vendia bem e minha experiência impressionava, mas só
agüentava algumas semanas"), dois psiquiatras, quatro
internações, um divórcio e duas camisas-de-força.
Perdeu dinheiro e propriedades. Abandonado e sofrendo de polioneurite
(uma doença degenerativa dos nervos), foi forçado
a voltar para a casa dos pais. "Em 1989 meu pai e minha mãe
desistiram de me emendar. Fiquei 14 dias na cama, bebendo. Eles
me ajudavam, limpavam, choravam e me levavam a bebida que eu exigia.
Foi no dia em que perdi a sensibilidade das pernas que disse: 'Não
agüento mais'. Não sei como, mas parei de beber. Sofri
cãibras, vertigens, náuseas e alucinações,
mas meus velhos me agüentaram. Nunca mais bebi. Custou, mas
refiz o casamento. Voltei a viver com minha mulher e meus filhos.
Hoje sou voluntário dos Alcoólicos Anônimos."
Dramas como
o de Paulo Roberto são mais corriqueiros do que parecem no
mundo corporativo, cada vez mais estressante e competitivo. Aqui
e lá fora. Recentemente, o empresário americano Sam
Johnson, herdeiro e presidente das Ceras Johnson, uma empresa que
fatura 6 bilhões de dólares, surpreendeu as pessoas
que convidara para assistir a um documentário sobre a viagem
de seu pai, H.F. Johnson, ao Brasil, em 1935, para conhecer a carnaúba
- a árvore que fornece a matéria-prima responsável
pela fortuna da família. A certa altura, Sam Johnson, hoje
com 73 anos, revelou sua luta para se recuperar do alcoolismo. A
doença, que também afetara sua mãe, Gertrude,
marcou-o profundamente desde a infância. "Nunca entendi
por que eles não ficariam juntos para sempre", diz Johnson,
no filme. "Anos depois, meu pai me disse que o motivo do divórcio
foi que minha mãe era alcoólatra." O drama de
Johnson é compartilhado por William Clay Ford Jr., o presidente
do conselho de administração da Ford, a segunda maior
montadora americana. "Eu tento não beber", disse
Bill Ford, cujo pai e cujos tios enfrentaram problemas com o alcoolismo,
numa entrevista à revista Business Week, em 1999. "Minha
personalidade não melhora muito quando bebo." Segundo
as estatísticas, a dependência química aflige
23,2 milhões de americanos - 14,8 milhões pelo consumo
de drogas e o restante pelo álcool.
A cada ano,
o uso abusivo de drogas como álcool, maconha, anfetaminas,
calmantes e cocaína custa ao Brasil 7,9% do PIB em tratamento
médico, perda de produtividade e acidentes - 48 bilhões
de dólares, em dinheiro de hoje, segundo estimativas da Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo. O Centro Brasileiro
de Informações sobre Drogas Psicotrópicas,
da Universidade Federal de São Paulo, que possui as melhores
estatísticas sobre dependência química no país,
detectou 726 000 internações por abuso de drogas em
hospitais e clínicas brasileiras, entre 1988 e 1999. O alcoolismo,
mal que aflige 12 milhões de brasileiros, foi responsável
por 90% das hospitalizações. As internações
por cocaína explodiram: de 0,8% do total em 1988, passaram
a 4,6% em 1999.
O custo social
dessa maré química está se elevando, junto
com os prejuízos que ela acarreta às empresas e à
economia do país. Ao contrário dos Estados Unidos
- o país que mais consome drogas no mundo -, no Brasil quase
não há indicadores sobre o impacto econômico
da dependência química no trabalho. Mas há sinais
de que ela está cobrando caro. Embora os programas de prevenção
contra drogas não sejam novidade para as empresas, o número
das companhias engajadas neles está aumentando. No último
dia 11 de maio, por exemplo, a Federação das Indústrias
do Estado de São Paulo (Fiesp) organizou um simpósio
internacional sobre Prevenção e Controle do Uso de
Drogas no Ambiente de Trabalho, para informar as empresas e trocar
experiências. O número de companhias que adotaram programas
de testagem obrigatória do consumo de drogas em funcionários
por exames de urina aumentou 400% em quatro anos. Em 1997, o Laboratório
de Análises Toxicológicas da Universidade de São
Paulo realizava testes para 81 empresas. "Hoje, atendemos 315,
em 23 Estados", diz o diretor Ovandir Alvez Pereira. A Secretaria
Nacional Antidrogas, vinculada à Presidência da República
e dirigida pelo general Alberto Cardoso, tem um projeto de lei pronto
para estender a testagem aos empregados de todas as empresas cujas
atividades causem impacto na segurança pública.
Nos Estados
Unidos, a prevenção no local de trabalho é
uma prioridade. Dos 50 Estados americanos, 22 dispõem de
legislação obrigando as empresas a manter programas
antidrogas. Isso não acontece por acaso. Por trás
de desastres e tragédias que assolaram o mundo corporativo
nos últimos anos, com freqüência os efeitos da
dependência química são a melhor tradução
para a expressão falha humana.
Em 1989, o petroleiro
Exxon Valdez bateu em um recife na costa do Alasca, despejou 42
milhões de litros de óleo no mar e gerou ondas de
protestos no mundo inteiro. O desastre acarretou à Exxon
multas e indenizações que já ultrapassaram
8 bilhões de dólares (e poderão subir ainda
mais). A guarda costeira constatou que o capitão do navio
estava alcoolizado, mas ele alegou que bebera depois do desastre,
para espantar o frio enquanto esperava socorro. A acusação
só conseguiu uma condenação por "conduta
negligente".
Meses depois
do sinistro, a lei federal 49 CFR Part 40 determinou a testagem
obrigatória antidrogas de todos os empregados no comércio
interestadual nos Estados Unidos, atingindo empresas de ônibus,
transportadoras, companhias de aviação, ferrovias,
companhias marítimas e fluviais - além dos funcionários
de usinas nucleares e de todo o pessoal militar. Compelidas pela
legislação, cerca de 80 000 empresas americanas bisbilhotam,
atualmente, a urina dos empregados atrás de drogas. A conta
da dependência química é elevada. De acordo
com o Departamento de Saúde do governo americano, o abuso
de substâncias tóxicas nos Estados Unidos custa 276
bilhões de dólares por ano em tratamento de saúde,
queda de produtividade e acidentes. Entre a população
acima de 12 anos, 7% consomem drogas ilícitas, 30% fumam
e 6% são tidos como heavy drinkers, ou bebedores pesados.
"Os Estados
Unidos perderam duas guerras", diz o americano John Burns,
diretor da clínica de recuperação Vila Serena,
de São Paulo. "A guerra contra o Vietnã e a contra
as drogas." Ex-diretor do Peace Corps no Brasil, nos anos 70,
o próprio Burns foi vítima do alcoolismo. Depois de
submeter-se a um tratamento numa clínica de Washington, passou
a trabalhar com dependência química. Em 1982, patrocinado
pela subsidiária brasileira da Johnson & Johnson, fundou
a primeira Vila Serena, no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, surgiu
a unidade de São Paulo, que se tornou um dos mais requisitados
centros de tratamento para dependentes químicos do país,
prestando serviços para funcionários de 86 empresas,
entre as quais Pão de Açúcar, Unibanco, Varig,
Perdigão, BankBoston, Avon, Shell, Petrobras, Eletropaulo,
Sabesp e Metrô. Burns gostou muito do filme Traffic, sobre
a luta contra as drogas. "A melhor cena passa-se dentro de
um avião", diz. "O czar da agência antidrogas,
interpretado pelo ator Michael Douglas, cuja filha é também
dependente, pede aos seus assessores idéias novas, diferentes,
para enfrentar o problema. A resposta é um silêncio
constrangedor. Ninguém sabe mais o que fazer."
De fato, lidar
com a dependência química é um desafio que pouca
gente está preparada para enfrentar. Parar de usar drogas
ou álcool é a coisa mais fácil do mundo. Duro
é parar de usar e ser feliz. Dezenas de institutos de pesquisa
americanos já descobriram que a dependência química
é uma doença decorrente mais de uma pane química
cerebral do que de um colapso do caráter. Há causas
genéticas, familiares, existenciais, culturais e sociais
para explicá-la. Há 10 000 anos o homem faz libações,
celebrações e comemorações com álcool
e drogas que hoje já perderam o sentido ritualístico.
Mas só agora a ciência está descobrindo por
que certos indivíduos têm propensão para transformar
o uso em abuso. Álcool, cocaína, nicotina e anfetaminas
alteram o circuito neurológico de recompensa e prazer no
cérebro.
Quando recebemos
elogios, vencemos uma prova, provamos boa comida ou fazemos sexo,
nosso cérebro produz dopamina, um neurotransmissor que ziguezagueia
entre os neurônios produzindo sensações que
vão do bem-estar à euforia. As drogas e a bebida aumentam
a concentração de dopamina, encharcam o cérebro.
Seu uso compulsivo destrói as conexões neuronais,
eliminando a capacidade de a pessoa sentir prazer sem aditivos.
Ao mesmo tempo, o excesso inflaciona, e a dose que produzia euforia
perde efeito, exigindo mais reforço. A abstinência
expropria o cérebro do dependente da única fonte de
dopamina que produzia bem-estar. De tal forma que viver deixa de
valer a pena. Para suspender o uso de drogas ou de álcool,
basta uma clínica de desintoxicação. Tocar
a vida sem eles é que é difícil. "Os pacientes
bebem compulsivamente e recaem porque o excesso de álcool
e drogas provoca alterações cerebrais e não
por serem sem-vergonha", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeiras,
coordenador da Unidade de Álcool e Drogas da Universidade
Federal de São Paulo.
Para os habitantes
do mundo corporativo, a esse conjunto de causas soma-se o impacto
epidêmico do estresse. A competitividade, a insegurança
no emprego e a perda dos apoios familiares tradicionais fragilizam
os indivíduos. "Cada vez mais temos de produzir resultados
e agregar valor", afirma o psicólogo Sigmar Malvezzi,
doutor em comportamento organizacional do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo. "E todos sabemos que as
empresas já enxugaram suas estruturas. Hoje, é difícil
alguém trabalhar apenas 8 horas", diz. Segundo ele,
insônia e inapetência sexual são alguns dos primeiros
efeitos do excesso de cobrança. A saída química
surge, então, como um recurso para reduzir a tensão.
"O estresse pode não ser determinante, mas é
um facilitador da dependência", diz a psicóloga
Eliana Audi, diretora da empresa Auster, de São Paulo, que
desenvolve programas de apoio pessoal a funcionários e mantém
uma central 24 horas para atendimento de emergência. Para
Eliana, a droga é um redutor de ansiedade: "A ligação
entre estresse e drogas prospera em quem administra mal a tensão.
Veja os adolescentes. Eles vivem um boom hormonal e a perspectiva
da saída do ninho, tudo ao mesmo tempo. É muita ansiedade.
Daí a vulnerabilidade".
A droga, portanto,
empresta potência aos enfraquecidos. Muitas pessoas passam
incólumes pelas provações (e até amadurecem
com elas), mas aquelas que têm propensão à dependência
ficam reféns dela. "Felizmente, estamos mudando e entendendo
o problema. Há dez anos eu pregava no Saara", diz Eliana.
"Hoje, as empresas estão assumindo a responsabilidade,
quebrando tabus e adotando programas de reabilitação.
E não é por paternalismo. Na hora em que se recupera
um dependente, valoriza-se o empregado e o trabalho."
Esse é
o ponto: as empresas têm muito a ganhar se passarem a encarar
a dependência química como um problema corporativo.
"Um empregado reabilitado é um empregado que veste a
camisa da empresa. Trata-se de um investimento", diz Elizabeth
Martini, sócia e diretora administrativa da Gelopar, fabricante
de aparelhos de refrigeração em Araucária,
na região metropolitana de Curitiba. "O absenteísmo
despenca, a produtividade aumenta e a solidariedade se espalha pela
empresa." Em 1997, a Gelopar criou um programa de prevenção
à dependência química para os seus 450 empregados.
Promoveu palestras, distribuiu material, envolveu as famílias,
treinou equipes para abordar eventuais pacientes e organizar um
grupo de auto-ajuda e estabeleceu convênio com uma clínica
psiquiátrica. No começo, houve estranhamento e uma
certa resistência entre os empregados. Quando se tornou claro
que a empresa não iria "punir" ninguém,
nem os que recusavam tratamento, a adesão aumentou. Em cinco
anos, 20 funcionários foram tratados. Os recuperados tornaram-se
os maiores propagandistas do programa. "O mais difícil
é mudar a mentalidade", diz Elizabeth. "Há
muito preconceito contra os dependentes químicos. Os operários
do chão de fábrica custam a admitir que um paciente
não é um vagabundo bêbado, mas um doente."
Na Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que opera 293 trens na
cidade de São Paulo, foram identificados 212 dependentes
entre 6 300 ferroviários. Desde 1995 foram tratados 176,
com taxas de recuperação de 49% para mulheres e 44%
para os homens. Atualmente, a empresa mantém quatro grupos
de auto-ajuda, com 103 participantes. "Se tivéssemos
de demitir um dependente e colocar outro em seu lugar, gastaríamos
quatro vezes mais do que com o tratamento", diz Luiz Alberto
Chaves de Oliveira, superintendente de relações sociais
da CPTM. O resultado, de acordo com ele, é notável:
"A empresa ganha um funcionário exemplar, mais produtivo
e mais participativo. E a sociedade ganha um cidadão".
As empresas
podem escolher entre duas linhas de tratamento, passíveis
de serem combinadas. Uma é a terapia psiquiátrica
que oferece cuidado individualizado focado na história de
cada paciente. Outra é o Programa de 12 Passos, de auto-ajuda,
dos Alcoólicos Anônimos (AA). Criado em 1935 nos Estados
Unidos, o AA é uma irmandade de grupos independentes e auto-organizados
divulgadores de um programa único para mudar a atitude e
a vida dos alcoólatras. A solidariedade grupal e o espelhamento
na experiência de cada dependente são a chave do seu
sucesso. Tanto que os AA não param de crescer: existem 2
milhões de membros em 154 países. No Brasil há
5 700 grupos, reunindo 120 000 pessoas. O método consolidado
e a experiência acumulada credenciaram a adoção
do seu programa por outras comunidades de interesses, como os adictos
de drogas, os Narcóticos Anônimos.
As redes de
apoio podem ser a primeira linha de defesa contra o vício,
mas nem todos se adaptam a dinâmicas coletivas. Na verdade,
tanto a psiquiatria quanto os AA são impotentes para abolir
as constantes recaídas. A dependência é uma
doença sem cura: a cura é manter-se longe da droga
ou do álcool, um dia após o outro - a expressão
"só por hoje" é um mantra dos Alcoólicos
Anônimos. Cada dia de abstinência é considerado
uma vitória pessoal.
A boa notícia
é que, embora a reabilitação funcione para
cerca de 50% dos dependentes químicos, nas empresas as taxas
de recuperação são mais altas: chegam até
a 80% dos casos, segundo o psiquiatra paulista Ronaldo Laranjeiras.
A última trincheira é o trabalho. Em geral, quando
o problema aflora na empresa é porque já transtornou
a vida pessoal e familiar do doente. Mas, como sua renda depende
do emprego, ele esforça-se para conservá-la e para
esconder a doença. "O valor crucial do trabalho facilita
a recuperação e torna a reabilitação
inesquecível para o trabalhador, que se torna grato à
empresa", afirma Laranjeiras.
Para as corporações,
o investimento em programas de apoio aos dependentes químicos
gera resultados que podem ser medidos. Na fábrica da Caterpillar,
em Piracicaba, no interior de São Paulo, 255 dos 2 200 empregados
foram tratados de dependência de álcool, cocaína,
maconha e anfetaminas. "Atualmente temos 54 pacientes em reabilitação",
diz Armando Carrasco, gerente médico da empresa. Entre os
recuperados, a incidência de acidentes de trabalho despencou
de 0,33 eventos por ano para 0,11; os acidentes pessoais (fora da
empresa) caíram de 0,59 para 0,40; e o absenteísmo
encolheu de 12,72 dias por ano para 8,65 dias. "O programa
se paga e dá retorno", diz Carrasco.
Uma das mais
bem-sucedidas experiências nacionais de prevenção
e tratamento da dependência química é dirigida
pelo Serviço Social da Indústria (Sesi) do Rio Grande
do Sul. Em convênio com a ONU, o Sesi criou, em 1995, o Projeto
de Prevenção de Uso de Drogas no Trabalho e na Família,
hoje implantado em 50 empresas gaúchas, entre as quais Tramontina,
Manah, Marcopolo, Azaléia, Avipal, American Tool e Empresa
de Trens Urbanos de Porto Alegre. O Sesi criou um modelo de atuação
com avaliação de desempenho que organiza campanhas,
distribui material e treina equipes nas empresas. O programa, cuja
introdução está sendo estudada pelo Sesi de
outros Estados, já foi exportado para países como
Chile, Argentina e Uruguai. Os resultados impressionam: redução
de 12,5% no alcoolismo, 40% no uso de drogas, 10% no absenteísmo,
30% nos atrasos e 34% nos acidentes de trabalho. "Nosso programa
atua sobre um campo virgem de assistência", afirma Leda
Ribeiro Pereira, coordenadora do projeto. Segundo ela, o retorno
da experiência gaúcha apresenta resultados melhores
do que os verificados em programas semelhantes dos Estados Unidos.
Lá, onde há sistemas cruzados de prevenção,
cada dólar investido em reabilitação gera 7
de economia para as empresas. No Brasil, como não há
outras redes de prevenção, a relação
é de 15 dólares de ganho para cada dólar aplicado.
Com a duração de 18 meses, o programa do Sesi requer
um envolvimento grande da área de recursos humanos das empresas.
Na Marcopolo, a maior fabricante nacional de ônibus, em Caxias
do Sul, foi montado um comitê de reabilitação
com 12 integrantes, encarregado de detectar os casos de dependência
entre 6 100 funcionários. "Nos últimos três
anos, internamos 70 funcionários numa clínica de Santa
Catarina", diz Almor João Ferreira, coordenador de recursos
humanos da Marcopolo. "A reincidência foi de apenas 20%."
Os programas
mais rigorosos são executados pelas filiais de multinacionais
americanas. Na Caterpillar, na Shell, na Esso e na United Airlines,
a testagem antidrogas de exames de urina é obrigatória.
"A idéia é mesmo inibir o uso. Um funcionário
nosso não pode estar na empresa sob efeito de drogas, pois
isso põe em risco o patrimônio e os clientes",
diz José Carlos Martins de Mello, gerente médico da
Esso. Além dos exames de urina na admissão, todos
os 1 600 funcionários da subsidiária brasileira (incluídos
o presidente e a diretoria) são submetidos a testagens periódicas
aleatórias e a novos exames nos casos de acidentes. Em 11
anos, já foram testados 6 284 funcionários, dos quais
apenas 47 casos deram positivo (31 na admissão). "Isso
significa que o anúncio da política de testagem, antes
da contratação, já inibe as candidaturas inadequadas",
diz Mello. A Esso exige a mesma política de sua rede de cerca
de 100 fornecedoras. "O resultado é que no ano passado
operamos uma frota de 700 autotanques sem nenhum acidente",
afirma Mello.
A Embraer, que
mantém um programa de prevenção desde 1984,
adotou a testagem em fevereiro de 2000 induzida pelo crescimento
das suas exportações para 20 países, que representam
98% de suas receitas. Seus dois principais clientes, responsáveis
pela compra de 281 dos 550 aviões encomendados em 2001, são
as companhias aéreas americanas American Eagle e Continental
Express. Na verdade, pode-se dizer que a globalização
empurrou a empresa de São José dos Campos para a adoção
dos padrões e normas de segurança dos Estados Unidos.
Este ano, a Embraer pretende testar todos os 10 500 funcionários
das suas 3 fábricas, durante a admissão e anualmente,
por sorteio aleatório. "Dos 4 214 testes realizados
no ano passado, 42 deram positivo para álcool ou drogas como
a maconha e a cocaína", diz João Bosco dos Santos,
gerente de recursos humanos da Embraer. "Desses, 38 começaram
tratamento." A empresa oferece internação em
clínica especializada, apoio psiquiátrico e reuniões
com grupos de auto-ajuda. "Não há nenhuma discriminação
ou prejuízo para a carreira do dependente", diz Santos.
"O fato de participar de um programa não constitui demérito
para o indivíduo."
A aplicação
da testagem, porém, não é exatamente pacífica.
De um lado, estão as empresas que se baseiam no fato de que
o acordo de trabalho é um contrato de direito privado, no
qual o empregador determina as condições de emprego.
Além disso, a Lei Antidrogas define a posse das drogas como
crime, o que autoriza a demissão de usuários na empresa
por justa causa. Na posição oposta estão os
que consideram os testes uma violação da privacidade
individual, garantida pela Constituição. "A inclusão
da testagem obrigatória no contrato de trabalho, sem justificativa
ou suspeita de uso, é inconstitucional", diz o jurista
Walter Maierovitch, ex-titular da Secretaria Nacional Antidrogas.
Há, entretanto, uma brecha legal. A Constituição
admite a realização dos testes para profissionais
cujo exercício esteja relacionado com a segurança
pública, como pilotos de avião, médicos, motoristas
de ônibus e policiais. Cabe à Secretaria Nacional Antidrogas
regulamentar a matéria e enviá-la para o Congresso
Nacional.
O consenso em
torno do assunto parece improvável, e as resistências
surgem de onde menos se espera. Em outubro do ano passado, por exemplo,
a Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo determinou
que seus 120 000 servidores fizessem os testes. A idéia era
colocar os agentes da lei acima de suspeita. Quem se negasse receberia
uma anotação de prontuário. A Polícia
Militar começou os exames, mas, em novembro, o Sindicato
dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo entrou
com um mandado de segurança contra a medida. Em janeiro passado,
o juiz Rogério Murillo Cimino, da 12a Vara da Fazenda Pública,
julgou o constrangimento "ilegítimo a quem quer que
seja". Todos os delegados sindicalizados foram isentos e o
programa de testagem acabou sendo suspenso.
Relativamente
recente no Brasil, a participação das empresas em
programas de prevenção e apoio aos empregados que
padecem da dependência química está longe de
alcançar a extensão verificada em países como
os Estados Unidos. Apesar dos avanços, é ainda pequeno
o envolvimento do primeiro escalão das empresas com o problema,
e são raros os presidentes que reservam um lugar para ele
em sua agenda (veja o quadro "Sucesso e excesso", na pág.
49). Isso reflete, na verdade, a resistência existente na
média e na alta gerência das empresas. Para uma parte
apreciável dos executivos brasileiros o tema é considerado
um tabu e de foro íntimo. "Programas de reabilitação
são ótimos para o chão de fábrica, mas
quase nunca sobem aos andares acarpetados", diz o psiquiatra
paulista Fumio Nishiyama. "É lá que estão
os executivos e diretores, justamente o pessoal submetido a maiores
jornadas de trabalho e altas doses de estresse." O motivo da
resistência, na avaliação de Nishiyama, é
que o estigmada de pen-dência não é compatível
com os ritos de manutenção da autoridade. Por isso
as companhias em geral preferem protegê-los e tentar uma reabilitação
em sigilo, em clínicas particulares, inclusive no exterior.
"Além disso, quanto mais diferenciado, sofisticado e
poderoso for o executivo, mais difícil torna-se abordá-lo",
diz Nishiyama. "Eles são talentosos, onipotentes e sabem
manipular." Para quem exerce o poder, a dissimulação
é um imperativo. "Conheci um diretor da Fiesp que tomava
chá freqüentemente. Só que dentro da xícara
havia uísque. A secretária dele acobertava",
afirma.
Imagine, então,
João, operário de montagem, e Alfredo, diretor financeiro
da mesma empresa. Os dois tomam um porre no domingo. João
chega atrasado na segunda, trêmulo, com a cara inchada, indisposto
e sem condições de trabalhar. Vai para o departamento
médico, é diagnosticado e, se estiver em uma empresa
moderna, é encaminhado para o programa de recuperação
de alcoolismo. Alfredo acorda às 10 horas, telefona para
a secretária, diz que segunda-feira é dia de passar
nos bancos e não vai ao escritório pela manhã.
Chega à tarde, também com a cara inchada. Afirma que
tem papéis para assinar e tranca-se no escritório.
"Os Joões são medicamentados ou demitidos, mas
os Alfredos passam anos criando problemas sem ser percebidos",
afirma o psiquiatra gaúcho Sérgio de Paula Ramos,
coordenador de dependência química da Associação
Brasileira de Psiquiatria. O problema, acredita Ramos, é
que as empresas estão progredindo no tratamento dos Joões,
mas são os Alfredos que costumam dar grandes prejuízos.
"Há diretores que se levantam para ir ao banheiro, dão
uma cheirada e voltam para a reunião", diz Ramos. "E
a empresa paga pelo desatino deles."
Nem sempre os
problemas gerados pela dependência química podem ser
detectados a olho nu. Até mesmo os mais calejados headhunters,
especializados em esquadrinhar as carreiras para encontrar o homem
certo para o cargo certo, são enganados. "Esse tipo
de informação privada dificilmente vem à tona",
diz Dárcio Crespi, presidente da Heidrick Strugles. "A
menos que existam hiatos na carreira do candidato que sugiram uma
investigação."
Mas não
é possível enganar a todos o tempo todo. Quando o
problema aflora, pode significar o fim da linha para um profissional
promissor. Foi o que ocorreu com um candidato a uma vaga de diretoria
numa empresa de agribusiness sediada no Rio de Janeiro que estava
sendo recrutado pelo headhunter Winston Pegler, presidente da Ray
and Berndtson. "Era o candidato perfeito para o posto",
diz Pegler. "O encontro foi um sucesso. Na primeira reunião
com o presidente da empresa, o homem ganhou o emprego." O desastre
aconteceu na volta para São Paulo. Na ponte aérea,
feliz e relaxado, o candidato pediu um uísque. Pegler serviu-se
de um, o executivo sorveu o seu, empinou um segundo, tornou-se inconveniente
e, quando pediu o terceiro, a aeromoça atendeu-o com evidente
má vontade. "Não acreditei quando ele passou
a mão no traseiro dela e disse: 'Deixa disso, meu bem'."
Em Congonhas, ao se despedir, o sujeito arrematou: "Vou dizer
à minha mulher que fiquei com você até mais
tarde. Quero ver minha gata". Pegler ligou do aeroporto mesmo
para o Rio e afundou a candidatura. "Percebi que a pessoa que
eu tinha vendido não era aquela", diz. "Havia outro
dentro dele."
(Exame)
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