Negro
chega à elite, mas desigualdade continua na África do
Sul
Depois de sete
anos do fim do apartheid, os negros da África do Sul já
andam de BMW, moram em belas casas e freqüentam lojas, bares
e restaurantes acessíveis antes apenas aos brancos.
O acesso à
elite resulta da política de "ação afirmativa",
com leis que determinaram, por exemplo, que as empresas refletissem
em seus quadros a composição racial e sexual da sociedade,
contratando mais negros (70% da população), mulheres
(45%) e deficientes físicos (5%).
Porém,
a desigualdade social prossegue. De acordo com o Banco Mundial,
13% da população tem qualidade de vida de Primeiro
Mundo, enquanto 53% vivem na pobreza.
(Folha
de S.Paulo)
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Elite
sul-africana muda de cor
Sete anos de
democracia racial na África do Sul mudaram radicalmente a
paisagem humana em Johannesburgo. Negros confinados à periferia
da cidade durante os 46 anos de regime de segregação
racial (1948-1994) circulam hoje por Sandton, a área mais
chique e exclusiva de Johannesburgo, com BMWs, moram nas belas casas
do bairro e frequentam butiques, bares e restaurantes acessíveis
antes apenas à velha elite branca.
Criar uma burguesia
negra era uma das estratégias do novo governo para combater
a desigualdade racial. Alçado ao poder nas primeiras eleições
multirraciais de 1994, o partido Congresso Nacional Africano, de
Nelson Mandela e do atual presidente Thabo Mbeki, adotou uma série
de medidas, batizadas de "ação afirmativa",
para promover o desenvolvimento da maioria negra.
A principal
delas foi a aprovação, em 1998, de uma lei determinando
que as empresas refletissem em seus quadros a composição
racial e sexual da sociedade, contratando mais negros (70% da população),
mulheres (45%) e deficientes físicos (5%).
A "ação
afirmativa", segundo os especialistas, teve um papel importante
na formação de uma nova burguesia nacional, mas não
conseguiu, como esperava o governo, reduzir a desigualdade.
"Para ter
impacto na desigualdade, você precisa de medidas drásticas
para aliviar a pobreza. O que a "ação afirmativa"
fez foi tornar as classes média e alta mais diversificadas
racialmente", disse à Folha o cientista político
Tom Lodge, da Universidade de Witwatersrand.
"Enquanto
em 1990 a maioria das pessoas em posições de gerência
ou em cargos técnicos era branca, hoje cerca da metade dessas
pessoas é negra. Então, a "ação
afirmativa" criou condições de mobilidade social
para os negros, mas não reduziu a pobreza, que continua a
mesma", acrescentou.
Pelos padrões
internacionais, a África do Sul, com 42 milhões de
habitantes e uma renda per capita de US$ 8.908, não é
um país pobre. Está no pelotão intermediário,
com bolsões de grande desenvolvimento. Mas enfrenta extremos
de riqueza e de pobreza que, segundo um recente relatório
da revista britânica "The Economist", são
vistos apenas no Brasil.
De acordo com
o Banco Mundial, 13% da população tem qualidade de
vida de Primeiro Mundo, enquanto 53% vivem na pobreza.
O governo negro
herdou distorções profundas do regime de apartheid,
que destinava aos brancos 85% das verbas da educação
e deixou uma massa de negros pobres e sem estudo. Mas a qualidade
de vida da população em geral não tem melhorado.
Apesar de cidades
como Johannesburgo e Cidade do Cabo contarem com ótima infra-estrutura
e rede de serviços -a Cidade do Cabo parece uma cidade européia-,
mais de 3 milhões de residências do país (de
um total de 11 milhões) não têm eletricidade
e água encanada. O desemprego atinge 30% da força
de trabalho, e, para piorar, 1 em cada 5 adultos convive com o vírus
da Aids.
"O governo
está tentando resolver os problemas da comunidade negra",
diz Lodge. "A qualidade da educação melhorou,
e há tentativas de levar água e eletricidade aos mais
pobres. Mas esses esforços serão inúteis se
a oferta de emprego não aumentar", afirma.
Steven Friedman,
do Centro de Estudos de Políticas, em Johannesburgo, acha
que o grande erro do governo é acreditar que as receitas
neoliberais em voga atrairão os investimentos para mover
a economia. "O que faz a economia crescer é investimento
em empregos, e não estamos obtendo isso, apesar dos esforços
do governo para reduzir o déficit público e promover
privatizações", disse Friedman à Folha.
Em relação
a outros países do pelotão intermediário, a
África do Sul tem recebido poucos investimentos estrangeiros
diretos. De acordo com o instituto de pesquisa Economist Inteligence
Unit, entre 1994 e 1999 (últimos dados disponíveis),
o país recebeu US$ 32 por habitante, enquanto o Brasil atraiu
US$ 106, a Argentina, US$ 252 e o Chile, US$ 333.
Na opinião
de Friedman, os investidores estão inseguros em relação
ao novo governo e ao rancor existente entre brancos e negros. Mas
Lodge discorda. Para ele, o maior problema é a falta de liderança
para promover reformas.
"Investidores
estrangeiros que queremos atrair continuam preocupados com este
país, com a segurança de seus investimentos, com o
alto custo da mão-de-obra, com o ambiente trabalhista bastante
regulamentado", salienta.
Enquanto políticos
e especialistas discutem a melhor forma de mover a economia e aumentar
a oferta de trabalho, a massa de desempregados vai sobrevivendo
como pode ao lado de imigrantes ilegais que chegam aos milhares
de todo o continente.
Muitos partiram
para o setor informal, tomando as calçadas com suas barracas
de frutas, de sapatos e de roupas. A nova elite negra não
se mostra, no entanto, solidária com os problemas da maioria.
"Um estudo
realizado na África do Sul revelou que o comportamento da
elite negra é muito semelhante ao da velha elite branca.
A burguesia negra não é hostil aos pobres, mas acha
que cabe ao governo lidar com a pobreza. Infelizmente, a nova elite
está tentando ser como a velha elite. Julga o próprio
sucesso pelo tamanho de seus carros e casas e gasta grandes somas
em roupas", diz Friedman.
Jovens brancos
buscam trabalho fora do país
Mary, 54, uma
moradora branca da Cidade do Cabo, está magoada porque o
filho de 22 anos, formado em marketing, não conseguiu arranjar
um emprego na África do Sul e partiu para Londres oito meses
atrás.
Ela pede que
seu nome completo não seja revelado, temendo ser acusada
de racismo por criticar o governo. "As pessoas pensam que isso
aqui é uma democracia, mas não é", disse
Mary à Folha.
Mary é
loira, tem olhos azuis e nacionalidade britânica. É
casada com um branco sul-africano, mas o casamento nunca foi reconhecido
pelo regime anterior porque Mary, embora filha de britânicos,
nasceu em Gâmbia, país predominantemente negro.
Mary foi considerada
"de cor" pelo regime de apartheid, que não permitia
casamentos inter-raciais. Para permanecer no país, Mary precisava
renovar constantemente o visto. "Sinto-me duplamente prejudicada",
diz ela. "Antes eu sofria por ser considerada "de cor"
e agora meu filho não encontra trabalho por ser branco",
reclama. O filho de Mary decidiu mudar-se para Londres, onde trabalha
em uma editora de livros.
Dados oficiais
mostram que, entre 1994 e 1999, a África do Sul perdeu cerca
de 9.000 brancos por ano. Mas esses números, segundo alguns
analistas, não representam a realidade, porque muitos jovens
estão emigrando sem avisar as autoridades. Uma pesquisa realizada
em 1998 revelou que 234 mil brancos deixaram a África do
Sul entre 1989 e 1997. Os dados oficiais registram apenas 82.800.
Mary diz que
a "ação afirmativa", ao determinar que os
negros ocupem a maioria dos cargos, reduziu muito as oportunidades
para os jovens brancos que saem das universidades. Mas os analistas
discordam. "O que está acontecendo é que há
-e ainda haverá por muito tempo- uma grande desconfiança
mútua. Os brancos ficaram com a impressão de que não
há trabalho e nem se incomodam em procurar", diz Steven
Friedman, do Centro de Estudos de Políticas, em Johannesburgo.
"As pesquisas
mostram que o desemprego entre brancos é o mais baixo já
registrado na história", observa o cientista político
Tom Lodge, da Universidade de Witwatersrand. "Brancos com qualificação
não estão tendo dificuldades para encontrar trabalho,
mas há uma percepção errada que precisa ser
corrigida", afirma.
Conseguir um
emprego no exterior não tem sido difícil para os jovens
brancos. Acredita-se que 750 mil sul-africanos tenham passaporte
britânico, e as livrarias do país estão cheias
de publicações com títulos como "Entre
nos EUA", "Ache um Emprego na Austrália" e
"Emigrando para Seis Países de Língua Inglesa".
Para Lodge,
a emigração de jovens brancos é preocupante
porque o país perde talentos de difícil reposição.
Os jovens também são importantes para a melhoria das
relações inter-raciais. O fim do apartheid deu poder
político à maioria negra, mas não eliminou
o preconceito e as suspeitas.
"Os brancos
são mais polidos agora, nos tratam melhor quando procuramos
emprego, mas não sabemos o que eles realmente estão
pensando", diz Stanley Gova, um guia turístico de Soweto.
Segundo ele, os negros perdoaram aos brancos, mas não esqueceram
o apartheid.
Uma pesquisa
divulgada no mês passado pelo Instituto de Justiça
e Reconciliação da África do Sul mostra que
muitos pensam como Stanley: 56% dos negros entrevistados acham que
os brancos não são confiáveis e 50% não
se imaginam tendo um amigo branco. Entre os brancos, 33% acham que
os negros não são confiáveis e 19% não
se imaginam tendo um amigo negro.
Segundo a pesquisa,
81% dos negros nunca comeram na mesma mesa com um branco.
Desigualdade
entre os negros não gera ressentimentos
A desigualdade
dentro do próprio grupo racial poderia gerar ressentimentos.
Mas na Vila Mandela, uma favela de Soweto, o subúrbio negro
de Johannesburgo, o clima é de euforia com a liberdade racial
e há grande esperança no futuro e no governo.
Os cerca de
10 mil moradores aguardam há 11 anos para serem reassentados
em algum novo conjunto habitacional. Eles vivem apinhados em barracos
sem água nem eletricidade. Apenas cinco torneiras abastecem
a favela, e os banheiros, cerca de 90, são compartilhados.
As condições
precárias da favela não desanimam, no entanto, Beauty
Zulu, 43, que vive em Soweto desde 1994, quando perdeu o emprego
na Província de Kwazulu-Natal e, separada do marido, foi
para Johannesburgo com as duas filhas.
Zulu trabalhava
na indústria de vestuário e hoje vive de esmolas e
da venda de artesanato para turistas. Mas o importante, para ela,
é que as duas filhas, de 14 e de 19 anos, estão indo
à escola. "Uma faz curso de computação",
diz Zulu, orgulhosa.
Zulu lembra
que, durante o apartheid, os negros vivam segregados e não
recebiam educação adequada. Ter as filhas na escola
é, para ela, a garantia de um futuro melhor.
Apesar das dificuldades,
Zulu não reclama do governo. "As coisas demoram para
mudar, e a pobreza não desaparece da noite para o dia",
comenta.
"É
preciso ter paciência", diz Stanley Gova, 29, um guia
turístico de Soweto. "Precisamos dar uma chance ao governo,
afinal, fomos nós que o escolhemos."
(Folha de S.Paulo)
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