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Brasil
é campeão em injustiça social
O Brasil é
o mais rico entre os países com maior número de pessoas
miseráveis. Comparado a 1977, o Produto Interno Bruto (PIB)
do país aumentou 85%, o número de domicílios
com televisão subiu 150%, o total de residências com
telefone triplicou e a frota de veículos mais do que triplicou.
A taxa de miséria permaneceu praticamente inalterada. A questão
da miséria no Brasil tem componentes ainda mais perversos
que a simples escassez de recursos. O primeiro deles é que,
no Brasil da miséria, há comida sobrando.
A pobreza no
Brasil é formada por dois grandes grupos. Há 30 milhões
de pessoas vivendo com extrema dificuldade, donas de uma renda mensal
per capita inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões
que vivem ainda em pior situação, sobrevivendo de
maneira primitiva. Não ganham dinheiro bastante para comprar
todos os dias alimentos em quantidade mínima necessária
à manutenção saudável de uma vida produtiva.
Há razões
de sobra, além do óbvio constrangimento moral, para
tentar de vez minorar esse problema. Do ponto de vista econômico,
a pobreza extrema reduz a competitividade do país e restringe
suas possibilidades de mover a economia pela força do mercado
interno. Mas a verdade cruel é que, nas contas macroeconômicas,
a questão da miséria absoluta é apenas um detalhe.
A porção mais pobre da pirâmide, os miseráveis,
não produz e pouco consome. Ou seja, os miseráveis
nem entram na equação econômica de um país
moderno.
Leia
mais:
Paradoxo da Miséria
24% dos jovens favelados são "inativos"
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Paradoxo
da Miséria
No dia 11 de
dezembro do ano passado, a médica Iara Vianna da Silva esteve
no barraco onde mora o pequeno Mateus Barbosa de Souza, em Itinga,
Minas Gerais. O garoto vive com o pai, a mãe e três
irmãos no bairro mais pobre da cidade, localizada no paupérrimo
Vale do Jequitinhonha. Aos 3 anos e meio, Mateus é vítima
de um tipo de desnutrição conhecida como kwashiorkor,
palavra importada da África, onde a doença foi descrita
pela primeira vez no início do século passado.
De tão
prevalente na África, kwashiorkor tem definições
em vários dialetos tribais. Num deles, falado em Gana, a
palavra designa originalmente a criança que não pode
ser alimentada pelo leite materno. Mateus tem a altura de um garoto
de 1 ano e 7 meses e o peso de um bebê de apenas 8 meses.
A doença atinge crianças que, privadas da proteína
encontrada no leite materno, num primeiro momento, e mais tarde
na carne, se alimentam basicamente de carboidratos.
Numa etapa inicial,
o mal produz fadiga, irritabilidade e letargia. O quadro inclui
diarréia, anemia e retardamento motor. Mateus, por exemplo,
não anda. Não tratada, a doença evolui, a imunidade
do paciente cai e o corpo incha.
Aparentemente
ele está apenas gordinho. É nessa fase que se encontra
Mateus. Nos casos mais graves, podem ocorrer deficiência mental
e morte. Mesmo tratada, a criança que teve kwashiorkor dificilmente
atinge altura e peso normais. Acostumada a diagnosticar casos de
desnutrição, a médica entregou à mãe
do garoto uma receita com o seguinte teor: "Mateus B. Souza
- Ao Serviço Social: Criança desnutrida. Kwashiorkor.
Cesta básica. Precisa comida. Vai morrer. Não anda.
Se pegar infecção, morre".
A doença
de Mateus não é apenas um drama familiar, mas o retrato
de uma tragédia nacional: a miséria. O Brasil passou
por uma transformação admirável nos últimos
25 anos. Comparado a 1977, quando se analisam alguns indicadores
nem parece que se trata do mesmo país. Nesse período,
o produto interno bruto aumentou 85%, o número de domicílios
com televisão subiu 150%, o total de residências com
telefone triplicou e a frota de veículos mais do que triplicou.
Infelizmente,
a taxa de miséria permaneceu praticamente inalterada e doenças
decorrentes da pobreza extrema, como a de Mateus, repetem-se aos
milhares. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), os miseráveis representavam, 25 anos atrás,
alguma coisa em torno de 17% da população. O índice
mais recente divulgado pelo mesmo instituto informa que a taxa de
miséria está em 14,5%.
Trata-se de
uma queda muito pequena diante do amadurecimento social, econômico
e político registrado no período. Queda proporcional,
diga-se, pois em números absolutos o número de desamparados,
incapazes de sair de sua situação sem ajuda, aumentou.
Eram 18 milhões há um quarto de século. São
cerca de 23 milhões hoje.
Miséria
é palavra de significado impreciso, como de resto a maior
parte dos termos que se referem à camada menos favorecida
da sociedade. O que exatamente quer dizer "pobreza" ou
"indigência"? Como identificar um pobre? Como ter
certeza de que existem 14,5% de miseráveis, e não
10% ou 20%? Não haveria subjetividade demais nessas estatísticas?
Em geral, cada
um percebe a miséria por sua experiência pessoal, como
definiu a americana Mollie Orshansky, uma das maiores especialistas
no assunto: "A pobreza, tal qual a beleza, está nos
olhos de quem a vê". Para efeito estatístico,
no entanto, os estudiosos chegaram a uma definição
quase matemática sobre o que são miséria e
pobreza. Conseguiram estabelecer duas grandes linhas. Uma delas
é a linha de pobreza, abaixo da qual estão as pessoas
cuja renda não é suficiente para cobrir os custos
mínimos de manutenção da vida humana: alimentação,
moradia, transporte e vestuário. Isso num cenário
em que educação e saúde são fornecidas
de graça pelo governo.
Outra é
a linha de miséria (ou de indigência), que determina
quem não consegue ganhar o bastante para garantir aquela
que é a mais básica das necessidades: a alimentação.
No caso brasileiro, há 53 milhões de pessoas abaixo
da linha de pobreza. Destas, 30 milhões vivem entre a linha
de pobreza e acima da linha de miséria. Cerca de 23 milhões
estariam na situação que se define como indigência
ou miséria.
Reforçando,
para evitar confusão: a pobreza no Brasil é formada
por dois grandes grupos. Há 30 milhões de pessoas
vivendo com extrema dificuldade, donas de uma renda mensal per capita
inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões que vivem
ainda em pior situação, sobrevivendo de maneira primitiva.
Não ganham dinheiro bastante para comprar todos os dias alimentos
em quantidade mínima necessária à manutenção
saudável de uma vida produtiva - ou seja, algo em torno de
2.000 calorias. Isso equivale a uma dieta diária que inclui
um pão e meio, cinco colheres de arroz, meia concha de feijão,
um copo de leite, um bife de 100 gramas, meio ovo e mais três
colheres de açúcar, óleo de soja, farinha de
trigo, farinha de mandioca e margarina.
Os miseráveis
não têm acesso a essa cesta biológica básica.
Esse é o chamado flagelo social. Não se sabe ainda
quais serão os candidatos a presidente, mas já se
sabe qual será o maior desafio do novo governo: reduzir esse
contingente de padrão africano. Desde já, é
bom para os candidatos decorar a palavra kwashiorkor e seu duro
significado na vida de milhões de brasileiros.
Metade dos que
vivem abaixo da linha de miséria mora na Região Nordeste.
Quando se calcula apenas a fatia rural da miséria, o Nordeste
representa mais de 70% do contingente. Essas são aquelas
pessoas que aparecem nas reportagens de TV sobre a seca mostrando
o pratinho de feijão que restou na despensa.
Os Estados mais
pobres do país, em termos proporcionais, segundo levantamento
recente feito pelo governo, são Alagoas, Ceará, Maranhão
e Piauí. Os que estão mais bem posicionados são
Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do
Sul. Determinar a faixa de miseráveis pelo consumo de calorias
é um critério internacionalmente aceito. O que varia
é o cardápio.
Segundo o último
estudo disponível sobre o assunto, realizado pelos técnicos
da Organização das Nações Unidas, existem
830 milhões de miseráveis no planeta. A doença
atinge todos os continentes, com intensidades diferentes.
Na Europa, na
Oceania e na América do Norte o problema tem escala reduzida,
pois a miséria ataca esporádica e temporariamente
alguns grupos de imigrantes clandestinos ou algumas minorias, como
as tribos aborígines na Austrália. A situação
muda de patamar na Ásia, que concentra 63% dos miseráveis
do mundo. O caso mais extraordinário é o da Índia,
onde mais de 300 milhões de pessoas vivem em estado de privação
absoluta.
Em termos proporcionais,
o epicentro da miséria mundial é a África.
No continente africano, um em cada quatro habitantes passa fome.
São 180 milhões de indigentes numa população
de 800 milhões de pessoas.
Com seus 23
milhões de miseráveis, o Brasil representa 3% do problema
mundial. Pode parecer pouco, mas é uma inserção
global três vezes maior do que nossa participação,
por exemplo, no comércio mundial, em que o Brasil aparece
com menos de 1% do movimento de compra e venda de mercadorias. Um
mergulho qualitativo sobre a questão dá a devida coloração
à situação brasileira. Para isso, tome-se o
ranking dos países com renda per capita semelhante à
brasileira. São eles México, Bulgária, Chile
e Costa Rica. Sabe qual tem taxa de pobreza equivalente à
brasileira? Nenhum. O pior deles, a Costa Rica, tem proporcionalmente
pouco mais da metade do número de pobres do Brasil.
As comparações
internacionais trabalham com a certeza de que todos os países
revelam dados confiáveis. Pode-se olhar a questão
sob outro prisma, mas nem por isso o quadro fica menos dramático.
Observe-se o ranking dos países segundo o porcentual da população
vivendo abaixo da linha de pobreza. Onde está o Brasil? Está
ao lado de Botsuana, República Dominicana, Mauritânia
e Guiné. Ocorre que, entre nossos "colegas de fome",
digamos assim, a renda per capita varia entre 15% e metade da renda
brasileira. Ou seja, não importa de que ângulo se olhe,
o Brasil é hoje o país mais rico do mundo com a maior
taxa de pobreza. A isso se chama injustiça social.
Há razões
de sobra, além do óbvio constrangimento moral, para
tentar de vez minorar esse problema. Do ponto de vista econômico,
a pobreza extrema e inelutável reduz a competitividade do
país e restringe suas possibilidades de mover a economia
pela força do mercado interno. Mas a verdade cruel é
que, nas contas macroeconômicas, a questão da miséria
absoluta é apenas um detalhe. A porção mais
pobre da pirâmide, os miseráveis, não produz
e pouco consome. Ou seja, os miseráveis nem entram na equação
econômica de um país moderno.
Teoricamente,
a economia pode muito bem funcionar sem que se leve em conta sua
existência. A economia brasileira se situa entre as dez maiores
do mundo e chegou a atrair no ano 2000 investimentos estrangeiros
da ordem de 30 bilhões de dólares. Quase metade dos
usuários de internet da América Latina concentra-se
no Brasil. Depois dos Estados Unidos, é a nação
que mais compra aviões executivos e tem a cidade com a segunda
maior frota de helicópteros do planeta.
No campo da
medicina, há hospitais e centros de pesquisa nacionais que
servem de referência mundial em áreas como a cardiologia.
Todas essas conquistas ocorreram sem que a miséria se tenha
retraído no país. É aí que entra a questão
ética. "Mais do que uma consideração de
ordem econômica, a dívida social é moralmente
inaceitável, e por essa razão tem de ser saldada",
afirma o deputado Delfim Netto (PPB-SP).
As bolhas de miseráveis parecem ter paredes de aço
no país. Parecem inexpugnáveis. Elas sobrevivem intactas,
indiferentes aos progressos que o país experimenta a sua
volta. Não regridem sequer diante de fenômenos sociais
que em outros países e situações históricas
foram decisivos para derrotar a pobreza. Entre esses fenômenos
está a mobilidade social. O Brasil é um campeão
da especialidade - mas nem isso adiantou para bulir com as estatísticas
da pobreza absoluta.
Nas pesquisas
que listam os povos mais empreendedores do planeta, os brasileiros
aparecem nos primeiros lugares. A mobilidade social no país
está entre uma das mais altas do planeta. Cerca de 80% dos
brasileiros que se encontram hoje no topo da pirâmide social
tiveram uma origem mais humilde. Eles começaram a vida num
patamar inferior e foram subindo vários degraus ao longo
da carreira profissional. Por que os miseráveis não
entram nessa roda ascendente? Porque não se qualificam sequer
para os degraus mais baixos da engrenagem.
"O fato
de reunir tanta miséria faz do Brasil um caso singularíssimo",
afirma o economista Edmar Bacha, responsável nos anos 70
pela criação do termo Belíndia, usado para
definir um país onde convivem a riqueza belga e a miséria
indiana. Essa perplexidade diante de uma nação com
diferenças tão marcantes entre os mais ricos e os
mais pobres já assaltara, no fim do século XIX, o
primeiro-ministro inglês Benjamin Disraeli (1804-1881). "Somos
dois países em um só território", dizia
ele, para justificar o ímpeto igualitário da reforma
social que marcou seu governo.
A questão
da miséria no Brasil tem componentes ainda mais perversos
que a simples escassez de recursos - que caracteriza o problema
em outros países, especialmente no continente africano. Ela
abrange dois grandes paradoxos. O primeiro deles é que, no
Brasil da miséria, há comida sobrando.
O prêmio
Nobel de Economia Amartya Sen explica que alguns países conhecem
a fome como resultado da ausência de alimentos. Em outros,
a fome é resultado da falta de dinheiro por parte de uma
fatia da população. Ásia e África convivem
com a fome clássica há séculos. Ali falta comida.
A atual produção de alimentos no continente africano
está 20% abaixo da registrada na década de 70, quando
a população tinha metade do tamanho.
No caso brasileiro,
no mesmo período, a safra de grãos mais que dobrou.
E o preço caiu. Enquanto o Brasil aprendeu que por aqui "em
se plantando tudo dá", Ásia e África conheceram
justamente o inverso. Em 1333, a fome matou 4 milhões de
chineses numa única região. Em 1770, vitimou pelo
menos 10 milhões de indianos. A Etiópia, que virou
sinônimo de fome na década de 70, perdeu um terço
de sua população na miséria entre 1888 e 1892.
O segundo paradoxo é que nunca se gastou tanto dinheiro na
área social e, mesmo assim, a situação não
melhora. Os governos municipais, estaduais e federal arrecadam na
forma de impostos, taxas e contribuições o equivalente
a 34% do PIB. De cada 10 reais arrecadados, 6 são investidos
na área social. São usados anualmente 21% do PIB em
políticas nessa área. Nenhuma outra nação
da América Latina gasta tanto. O governo conseguiu realizar
até mesmo uma façanha quando criou o Comunidade Solidária,
pilotado pela primeira-dama Ruth Cardoso. O projeto eliminou as
repartições-balcão da área social, como
a Legião Brasileira de Assistência ou o Ministério
do Bem-Estar Social.
Em vez da corrupção,
surgiu a figura da parceria entre os três níveis de
governo e as organizações da sociedade civil. Graças
ao Comunidade Solidária e ao chamado terceiro setor, a assistência
social vive um momento especial. Um exército de voluntários
que já conta com mais de 20 milhões de pessoas ajuda
a tornar menos sofrida a vida de doentes, menores e idosos abandonados
e os miseráveis. Infelizmente, tal apoio não basta
para reverter os indicadores sociais. E por quê?
Uma explicação
diz respeito ao desempenho da economia. Há uma ligação
direta entre crescimento e movimentação ascendente
dos pobres na escala social. Entre 1950 e o fim dos anos 70, fase
de crescimento, a taxa de pobreza caiu. Na década perdida
de 80 e na década frustrada de 90, a economia se comportou
mal e a taxa de miséria subiu. Alguns exemplos desse verdadeiro
tobogã social: na crise do petróleo, de 1979, o total
de miseráveis saltou de 22% da população para
24%. Chegou a 25% no auge da recessão de 1983 e atingiu seu
ponto mais baixo em 1986, durante o Plano Cruzado, com 9,8%.
Como o plano
não vingou, a inflação ressurgiu e o número
de pobres aumentou. A taxa chegou a 21,4% da população
em 1990. Com o Real, caiu a um patamar próximo a 15%. Mas
desde então se estabilizou. Na prática, o país
pouco evoluiu nesse campo em 25 anos. Os estudiosos afirmam que
a taxa de miséria só entrará em queda quando
a economia voltar a crescer com mais força.
Pesquisadores
do governo fizeram várias simulações para averiguar
o tipo de impacto sobre a pobreza que o crescimento econômico
poderia proporcionar. A conclusão de um desses estudos é
que o crescimento, quando associado a um modelo de distribuição
de renda, pode transformar por completo uma nação.
Hong Kong, Cingapura, Taiwan e Coréia do Sul acharam uma
saída por essa via. Nos anos 60 eram países mais atrasados
que o Brasil e hoje já estão bem à nossa frente
em termos sociais.
A fórmula
usada nesse período combinou investimentos maciços
em educação, saúde e reforma agrária.
Quando se fala em distribuição de renda, a inclinação
natural de alguns governantes é imaginar a criação
de um novo imposto, uma espécie de CPMF da fome. É
uma solução perigosamente enganadora. "Impostos
para erradicar a pobreza tiram a competitividade das empresas, diminuem
o potencial de crescimento do país, reduzem a renda e o número
de postos de trabalho", afirma o ex-ministro Mailson da Nóbrega.
Mais relevante
que criar outras fontes de receita é discutir o destino do
dinheiro que o governo arrecada. O recurso gasto pela área
social do governo é insuficiente não porque se desvia,
mas porque vigora no país um modelo concentrador reforçado
pela Constituição de 1988. O professor José
Márcio Camargo, da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, fez as contas sobre a natureza das despesas sociais
(educação, saúde, previdência e assistência
social).
Do total de
recursos gastos com educação, por exemplo, 60% se
destinam às universidades estatais, onde estudam os mais
favorecidos. O programa de bolsas de estudo do governo segue no
mesmo caminho. Apenas 0,3% do dinheiro fica com os 20% mais pobres.
Os 20% mais ricos embolsam 34% do total. No caso da saúde,
a esmagadora maioria dos recursos fica com a medicina curativa e
a menor parte dirige-se aos gastos preventivos. Uma parcela ínfima
das despesas sociais vai para o saneamento, forma importante de
melhorar a expectativa de vida ao nascer e reduzir a mortalidade
infantil.
A Previdência
Social, lembra o professor, é o exemplo mais grave. Só
7% do dinheiro gasto com o sistema de pagamento de aposentadorias
fica com os 20% mais pobres. Os 20% mais ricos recebem 30% do total.
Camargo arrisca um cálculo: se o Congresso Nacional aprovasse
uma reforma na Previdência que eliminasse o déficit
do sistema e obrigasse os estudantes ricos das universidades do
governo a pagar mensalidade, isso liberaria 50 bilhões de
reais para atender os pobres.
"Os recursos
sociais deveriam ser apropriados pelos pobres, mas acontece justamente
o contrário", afirma Camargo. Fica a sugestão
aos candidatos ao governo neste ano de eleições presidenciais.
Se o Brasil
adotasse o modelo proposto por Camargo apenas no campo da educação,
ou seja, se concentrasse as despesas no ensino básico e deixasse
de lado os gastos com as universidades federais, talvez conseguisse
operar uma pequena revolução. Uma pesquisa recente
descobriu que, se o pai não estudou, o filho só fica
três anos na escola. Mas, se o pai tiver cursado o ciclo elementar,
ainda que sem completá-lo, o tempo de permanência do
filho na escola dobra. No limite, filhos de quem fez o doutorado
estudam durante catorze anos.
A conseqüência
econômica da educação é fabulosa. Um
trabalho do Ipea mostra que a garantia de escolaridade de cinco
anos para toda a população brasileira faria a miséria
cair 6%. A mesma garantia por dez anos reduziria a pobreza em 13%.
"Desarmar os mecanismos que concentram renda no Brasil é
o único caminho para tirar as pessoas da linha de miséria
e construir um modelo de sociedade mais justo", lembra o economista
Marcelo Néri, estudioso da Fundação Getúlio
Vargas.
Como conseqüência
do emprego inadequado dos recursos, o Brasil aparece todos os anos
nas listagens internacionais como um dos países com maior
concentração de renda do planeta. Significa dizer
que, apesar de não se tratar de uma nação pobre,
perpetua-se um fosso gigantesco entre a base e o topo da pirâmide.
No país mais rico do mundo, os Estados Unidos, a diferença
de renda média entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos
é de oito vezes. Na Alemanha, ela é de seis vezes.
Nas nações
do Terceiro Mundo, a conta é mais desigual, mas nada se compara
ao Brasil. No Chile, a diferença é de dezoito vezes
e na Guatemala, de trinta. Pois bem: em solo pátrio, essa
diferença é de 33 vezes. Numericamente, isso pode
ser traduzido de outras formas: 1% da população, a
parcela mais rica, detém a mesma quantidade de recursos que
os 50% mais pobres. Outro modo de ver esse problema é tomando
como base os 10% mais ricos. Juntos, eles concentram metade da renda
nacional.
Um dos métodos
mais precisos para aferir o grau de desigualdade social de uma nação
é um índice chamado Gini, em homenagem a Corrado Gini,
pesquisador italiano que o criou. O Gini brasileiro permanece ruim
e inalterado há mais de vinte anos. Há alguns meses,
ao avaliar essas estatísticas e fazer um balanço positivo
de seu governo nessa área, o presidente Fernando Henrique
Cardoso concluiu seu raciocínio com a seguinte frase: "Houve
uma melhoria muito pequena na distribuição de renda,
muito pequena". Está na hora de mudar isso. Uma saída
razoável é valer-se das diferenças na busca
da solução. Por que não convocar as melhores
cabeças do Brasil-Bélgica para melhorar de vida a
porção Índia? Com a palavra, os candidatos.
(Veja)
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24%
dos jovens favelados são "inativos"
Morro do Catumbi,
na zona norte do Rio do Janeiro, 11h da manhã da última
quinta-feira. Luciano Pinto Amaro, 21, cabelos descoloridos à
moda funk, é um dos vários jovens que conversam no
bar próximo ao seu barraco. Tem um bebê de um mês,
mas não estuda nem trabalha.
Parou de estudar
na quarta série para ajudar em casa. Foi mecânico,
faxineiro e entregador de farmácia. Há um ano, não
faz praticamente nada. Ajuda (pouco) a cuidar do filho, faz um biscate
aqui, outro acolá...
Luciano está
entre os 23,6% -quase a quarta parte- dos jovens entre 15 e 24 anos
das favelas da cidade do Rio que não trabalham, não
estudam nem procuram emprego.
Eles fazem parte
do que os especialistas chamam de população inativa
das favelas, aquela que está fora do mercado de trabalho,
seja jovem, adulta ou idosa. Do total dos inativos, 48% são
jovens entre 15 e 24 anos que não só estão
fora do mercado como também não estudam.
Os dados são
de uma pesquisa da Secretaria Municipal de Trabalho do Rio de Janeiro
e da Sociedade Científica da Escola Nacional de Ciências
Estatísticas do IBGE que foi a campo entre os anos 1998 e
2000 em 51 comunidades beneficiadas com o programa favela-bairro
da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Do total de jovens na faixa etária pesquisada, pelo menos
55,5% não estudavam. Falta aqui a estatística dos
que estavam procurando emprego, mas haviam parado de estudar.
A mulher de
Luciano, Simone, 23, parou de estudar na quinta série. "Resolvi
que queria zoar, aí larguei a escola", diz. Engravidou
pela primeira vez aos 19 anos. Há dois anos foi morar com
Luciano e engravidou novamente.
A gravidez precoce
é uma das hipóteses levantadas pelo economista André
Urani, ex-secretário de Trabalho do município do Rio
e um dos responsáveis pela pesquisa, para a formação
de um contingente tão grande de jovens que não trabalham
nem estudam.
Entre os adolescentes
de 15 a 17 anos contados pela pesquisa nas 51 comunidades, 19,1%
não estavam trabalhando, estudando ou procurando emprego.
Desses, 62,7% eram meninas, 79,6% das quais disseram fazer algum
trabalho domésticos. A suspeita é que grande parte
desse trabalho seja cuidar de seus próprios filhos.
É a avó
de Luciano, faxineira diarista, que sustenta a casa. No barraco,
de 2 m x 3 m, há apenas uma cozinha, um banheiro e uma sala
que serve de quarto.
Sobre um estrado há um colchão de solteiro, onde dormem
Simone e Luciano, e um de casal, onde a avó dele dorme com
o bebê, que também se chama Luciano, e a filha de Simone,
Maiara.
Nas favelas
do Rio, 15,4% dos jovens entre 15 e 24 anos já são
chefes de família (segundo dados do IBGE de 1999, em todo
o Rio de Janeiro esse índice é de 6,7%), mas nem todos,
como mostra o exemplo de Luciano, exercem de fato esse papel.
E se quiserem
fazê-lo, o caminho é difícil. De acordo com
dados da pesquisa da Prefeitura do Rio com o IBGE (Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o desemprego
atinge 18,6% dos jovens favelados entre 15 e 24 anos.
Na totalidade dos residentes em favelas, essa taxa cai para cerca
de 11,6%, segundo dados do IBGE. E entre jovens de 15 a 24 anos
de toda a região metropolitana da cidade, a taxa é
de 11%. Tecnicamente, desempregado é quem está procurando
trabalho e não está conseguindo.
Para jovens
desocupados e fora da escola do morro do Catumbi, como Luciano,
a outra opção está à vista: o tráfico
de drogas.
Na subida do
morro, os traficantes autorizam a entrada da reportagem da Folha,
acompanhada por um integrante da associação de moradores.
Na descida, um grupo de cerca de dez jovens joga sacos plásticos
com maconha e cocaína em cima de uma mesinha. Outro rapaz,
usando apenas calção, conta o dinheiro. Outros, armados
com pistolas, guardam a entrada da favela.
A pesquisa do
IBGE/Prefeitura do Rio de Janeiro não contou o número
de jovens das favelas que trabalham no tráfico, mas constatou
que um simples olheiro, a tarefa mais simples e menos perigosa na
hierarquia do tráfico, ganha por mês R$ 600. Olheiro
é aquele que fica vigiando para ver se a polícia está
por perto.
Nas atividades
legais, a média salarial constatada pela pesquisa foi de
R$ 170 para jovens entre 15 e 17 anos e de R$ 310 para a faixa entre
20 e 24 anos.
Para Luciano, o tráfico não compensa, porque leva
os rapazes à morte ou à prisão: "Prefiro
trabalhar honestamente, ganhar pouco e viver mais".
(Folha de
S. Paulo)
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