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26/02/2007
ECA: cumprir antes de modificar

O exemplo de São Carlos, que reduziu os homicídios praticados por adolescentes, mostra que o ECA deve ser aplicado, e não modificado

Como seria dizer que um remédio não é bom para uma doença ou, ainda, que é necessário dar uma dose maior para que ele produza o seu efeito antes mesmo que ele tenha sido administrado ao doente? Essa é a imagem que deveria vir às nossas cabeças quando se fala em mudança do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ou em redução da idade penal.

Nem bem colocamos em prática os princípios contidos nessa lei, de 1990, nem experimentamos executar suas proposições pensadas e discutidas por quem atua na área e somos interpelados por aqueles que apenas a conhecem pelo "ouvi dizer" e, sob clima de comoção, querem propor mudanças ou estabelecer critérios mais duros na sua aplicação.

Solidarizar-se com a tragédia e a barbárie vivida pelo pequeno João Hélio e sua família é o mínimo que se espera de um cidadão consciente. Indignação é, por certo, atitude ainda mais adequada. O que fazer, porém, diante de fatos como esse exige de nós uma reflexão séria e a busca de uma solução consistente. Para continuar na comparação acima, não é a receita que cura o paciente, mas a administração regular do medicamento.

O adolescente é impulsivo, imprevisível, ousado. Isso nós já conhecemos e sabemos que faz parte das suas qualidades e também está presente nos seus erros. Por não acreditar no impossível, ele é capaz de fazer malabarismos impensáveis sobre uma bicicleta, um skate ou um par de patins.

Bem orientado, é capaz de canalizar tais atributos para grandes realizações. O que vemos muitas vezes, porém, são oportunidades negadas e uma contínua exclusão. Excluído da família, da escola, do lazer, da profissionalização, do trabalho e, não raro, até da sociedade pelo seu modo irreverente de se vestir e de andar.

Negamos as oportunidades, os deixamos à mercê do consumismo e da mídia que banaliza a violência e os valores morais e, quando caminham em direção ao delito, mais uma vez o que nos ocorre é a violação do direito.

O ECA contempla a situação do jovem que errou e, pedagogicamente, propõe um itinerário que o ajude a se reorientar de forma positiva. Serviços comunitários, liberdade assistida e semiliberdade são oportunidades que devem levá-lo a refletir sobre sua conduta antes que tome gosto pelos enganos do mundo da criminalidade.
Salvo raras exceções, programas de medidas socioeducativas inexistem ou têm péssima qualidade. Não investimos na prevenção e queremos relegar a responsabilidade à internação.

Chame-se por qualquer nome (Degase, Febem, Caje etc.) esses centros que se regem pelas mesmas leis dos cárceres e presídios para adultos. Não será o tempo que os jovens permanecem neles que irá tirá-los do mundo da criminalidade. Serão as oportunidades oferecidas e o que fizermos para que eles não precisem chegar lá.

São Carlos, no interior do Estado de São Paulo, vem apostando nessa fórmula. Em 2001, criou o NAI (Núcleo de Atendimento Integrado) e tirou do papel o art. 88, inciso V, do ECA. Começou a trabalhar na integração entre Estado e município, Judiciário, segurança pública, Ministério Público, assistência social, saúde, educação, ONGs e família. Uma ação ágil na intervenção junto ao adolescente autor de ato infracional, que se inicia a partir de pequenos desvios, que tem como centro da sua atenção a pessoa do adolescente, e não o delito praticado, tem trazido bons resultados.

A cidade, que em 1998 teve 15 homicídios praticados por adolescentes, viu cair este índice para no máximo dois por ano entre 2001 e 2005 e nenhum em 2006. O índice de reincidência de São Carlos fica em torno de 4%, contra uma média de 30% quando apenas há procedimentos convencionais de internação. Além disso, teve reduzido em 90% o número de internos na Febem quando comparado a municípios de igual porte.

A experiência, que busca sempre novos parceiros para melhorar ainda mais, é exemplo concreto de que o ECA precisa ser aplicado, e não modificado. Para multiplicá-la pelo país, basta vontade política de governantes, pois recursos financeiros não faltam -o interno da Febem, por exemplo, custa quatro a cinco vezes mais que um jovem atendido pelo NAI.

Além do mais, nenhum país resolveu o problema pelo endurecimento das leis. Reduzir a idade penal é ilusório, inócuo e contraproducente. Investir em educação, oportunidades e atenção é mais barato, eficiente e humano.


NEWTON LIMA NETO , 53, engenheiro químico, doutor em engenharia, é prefeito reeleito de São Carlos. Foi reitor da Universidade Federal de São Carlos de 1992 a 1996.
AGNALDO SOARES LIMA , 46, padre salesiano, é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Carlos. Foi diretor do NAI/São Carlos desde sua implantação até 2004.


Artigo publicado na Folha de S.Paulo.